ARTIGOS
Os "iis", seus pingos, seus parasitas
Por ADHEMAR BAHADIAN
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Publicado em 28/05/2023 às 22:15
Alterado em 28/05/2023 às 22:15
Estamos ainda melancolicamente sob o compasso do último suspiro do século XX. Melancólico, porque desde o início não faltou quem nos alertasse para os remendos na vistosa roupa do rei. No caso, nas saias austeras da primeira-ministra do Reino Unido, Lady Thatcher, a dama de ferro, a Cinderela do então novedoso neoliberalismo, marca de fantasia da mais violenta concepção da sociedade capitalista moderna.
Lady Thatcher e Ronald Reagan foram os jararaca e ratinho do grande ensaio de implosão da social-democracia e sua substituição pela lei do mais forte a partir dos anos 70/80 do século passado, quando os mais do que famosos anos dourados do pós-segunda guerra mundial se tornam insuficientes para reciclar o regime capitalista ávido por aumento de lucros, muito acima dos parâmetros vigentes no melhor momento da classe média americana e seu universalmente difundido “american way of life”.
Hoje, passados quase meio século das duas frases funéreas do casal Reagan-Thatcher, ele, ao proclamar que o governo não era a solução é sim o problema e, ela, a destilar a anti-sociologia de que não há sociedade e sim um apanhado de indivíduos, constata-se que o rosário neoliberal muito longe de transformar cidades e países modernos em sociedades globalizadas, onde a decantada racionalidade produtiva contribuiria para o enriquecimento de todos, na realidade promoveu mudanças sistêmicas profundas sim, mas ao preço cada vez maior de um desajuste social intolerável e de uma crescente deterioração das pautas de direitos sociais, políticos e humanos com que aprendemos a viver nos regimes democráticos.
Daí que, hoje, nesses outonos longe de meramente corriqueiros, nos defrontamos com um mundo em pânico, tão profundas são ameaças trazidas por Pandemias universais mal geridas, por movimentos maciços de correntes migratórias rechaçadas de forma bestial por países cuja formação populacional e obreira muito deve ao imigrante, pelo aparentemente infatigável renascimento de teorias políticas responsáveis pelo morticínio humano de guerras e ditaduras, embora arrogantemente propostas como restauração civilizatória.
E estamos a deslizar inelutavelmente para profundezas impensáveis da convivência humana, até mesmo em países crédulos de serem portadores de um “destino-manifesto“, hoje profundamente temidos pela insustentabilidade dos preceitos deste destino, muito mais inconfessável do que manifesto. Lamentável a indisfarçável incapacidade de reconstrução da tessitura social constante e defensivamente cega a experiências já vividase frequentemente reincidentes a erros e insucessos anteriores.
No Brasil, em particular, preocupa o que se está a ver no Parlamento, onde prolifera uma tendência a ignorar a insatisfação da maioria da população com a manutenção ou persistência de comportamentos políticos claramente rejeitados.
Assim, não pode soar senão como estapafúrdia a proposta de emenda constitucional, apoiada por partidos de oposição, mas também por partidos alinhados ao governo, pela qual se pretende considerar aceitáveis e lícitas, manobras diversas já claramente proibidas por lei. Junto com essa astúcia, viceja outra, tão ou mais malévola a eternizar o chamado orçamento secreto impugnado pelo Supremo Tribunal Federal e repelido pela cidadania que se constrange com o mercantismo rasteiro do jogo político.
Afinal, coloquemos os pontos nos ”iis“ da questão. O que pretendem os representantes do povo, eleitos inclusive com fundos públicos bastante alentados? Escancarar que a política brasileira é intrinsecamente venal, desprovida de sintonia como os maiores problemas da nação? Porque, convenhamos, o voto parlamentar está virando uma barganha do mercado do peixe. E cheira a podre.
No limite, pode-se entender que político comprometidos com a autocracia e aqueles outros interessados num quanto pior melhor possam pautar suas travessias políticas por estas molduras. Mas, ao que parece, estas aleivosias são frequentes e parecem ignorar a desfaçatez endereçada ao eleitor. Qualquer eleitor.
Enquanto isto, a cidadania brasileira é diuturnamente massacrada em suas convicções democráticas e talvez, até com certa razão, deva perguntar-se se não há em toda essa desenxabida ciranda financeira a tentativa maquiavélica de enxovalhar primeiro o Poder Legislativo, em seguida o Judiciário e implantar no Brasil o regime autoritário de um Erdogan, de um Orban, de um Putin e ainda por cima acreditar que a nova casta empoderada não será ainda mais cínica, mais sórdida, do que a classe política atual.
A julgar pelo passado que conhecemos, a troca será muito desvantajosa. Resta, portanto, o caminho sempre mais difícil de repensar rumos, adotar posturas mais identificadas com os princípios da Constituição de 1988 que, apesar, de alvejada pela maleita nacional, ainda segue como nosso porto de arribação. Fora dela, adentramos o cassino político. E vamos perder. Joguemos no Vermelho ou no Preto.
Adhemar Bahadian. Embaixador aposentado