ARTIGOS
O tempo e o sagrado viver
Por DANIEL GUANAES
Publicado em 17/05/2023 às 09:38
Alterado em 17/05/2023 às 09:38
A transitoriedade da vida está entre as coisas incontestáveis que o ser humano lida de forma mais intrigante. Todos sabemos que o tempo passa, e que com ele tudo se transforma. Ainda assim, nos surpreendemos com muitas das constatações que fazemos quando lidamos com o resultado de tais transformações. Envelhecimento, mudança de fase, crescimento dos filhos, fins de ciclos profissionais, falecimento. Seja o que for, a lembrança de que o tempo não para muitas vezes nos assusta. Como se de alguma forma nos pegasse desprevenidos.
De onde vem a nossa surpresa com a transitoriedade da vida? Por que nos espanta tanto o fato de o tempo não parar, se sempre foi assim? Como canta Gilberto Gil, tudo permanecerá do jeito que tem sido: transcorrendo, transformando. O tempo e o espaço, lembra o artista, navegam todos os sentidos. Se é assim, talvez o que nos desconcerte não seja o óbvio que está posto, mas a denúncia que ele faz à nossa consciência quando seguimos o curso da vida ignorando uma realidade tão basilar: a de que o viver é sagrado.
O livro de Gênesis, o primeiro da Bíblia, nos ajuda a entender essa relação entre o tempo e a sacralidade do viver. Os ensinamentos dela transcendem limites religiosos, servindo como fonte de sabedoria para os que nela creem ou não, e esse texto específico diz que, no processo de criação do universo, a primeira coisa que Deus sacraliza é o tempo. Antes de qualquer coisa ou espaço, o tempo foi narrado como sagrado. Parece um detalhe, mas penso ser uma das formas mais didáticas de se ensinar a sacralidade da vida.
Nós tomamos como certa a hipótese de que cada nova manhã chegará para todos. Porque a vida é uma sucessão ininterrupta dessa experiência de pequenos ciclos que se renovam a cada 24 horas, não ficamos a cada instante nos perguntando se tais ciclos irão ou não acontecer. Vivemos como se o tempo estivesse ali; garantido. E de fato, ele estará. Nós é que, na verdade, nem sempre estaremos. Como canta Caetano Veloso, em sua oração ao tempo, alguma hora teremos saído para fora do seu círculo. E é justamente por isso que, enquanto nele estivermos, precisamos caminhar com a consciência e o compromisso do sagrado viver.
O espanto com o filho que cresceu, com o ano que já quase chegou na metade, com o trabalho no qual já se está há mais de dez anos, ou com qualquer outro marcador desse compasso contínuo, ritmado e ininterrupto deve nos servir de alerta. Uma espécie de lembrete existencial. E, para não nos angustiarmos ao percebermos que o que perdemos não recuperaremos, o que de melhor podemos fazer é procurar construir cada momento considerando o que nem por um instante sequer deveria sair da nossa consciência: o viver - meu, seu e de qualquer pessoa - é sagrado.
Daniel Guanaes. PhD em teologia pela Universidade de Aberdeen, Escócia, é pastor na Igreja Presbiteriana do Recreio, no Rio de Janeiro, e psicólogo clínico.