JUSTIÇA

STF × big techs e 'metatrumpismo': 'O que está em jogo é a nossa soberania', afirma analista

Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas afirmam que as plataformas de redes sociais são hoje um "grande ativo de intervenção dos EUA em assuntos internos de outros países", e que o julgamento no STF em torno da responsabilidade acerca do conteúdo postado é apenas uma parte do problema

Por JORNAL DO BRASIL com Sputnik Brasil
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Publicado em 05/06/2025 às 07:44

Alterado em 05/06/2025 às 07:44

Julgamento do Marco Civil da Internet prossegue nesta quinta-feira, no STF Foto: Antonio Augusto/STF

Por Melissa Rocha - O Supremo Tribunal Federal (STF) retomou nesta quarta-feira (4) o julgamento do artigo 19 do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), que determina que provedores e plataformas de internet e redes sociais somente podem ser responsabilizados por conteúdo postado por usuários após recebimento de ordem judicial.

A retomada do julgamento ocorre em um momento que o STF é alvo do governo dos EUA, em especial o ministro Alexandre de Moraes. Em maio, o secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, afirmou em audiência no Congresso americano que há "grande possibilidade" de o governo Donald Trump aplicar sanções contra Moraes com base na Lei Global Magnitsky, que permite punir estrangeiros supostamente envolvidos em violações de direitos humanos ou corrupção.

A declaração de Rubio foi dada em resposta ao deputado republicano Cory Mills, que é um dos interlocutores junto ao governo Trump do deputado federal licenciado Eduardo Bolsonaro, que está nos EUA promovendo uma agenda contra Moraes e o STF por conta do processo contra o pai, o ex-presidente Jair Bolsonaro, por tentativa de golpe de Estado.

Afonso de Albuquerque, cientista político da Universidade Federal Fluminense (UFF), afirma que as plataformas de redes sociais são um tema caro para o governo norte-americano porque se tornaram "o grande ativo de intervenção dos EUA em assuntos internos de outros países".

Ele explica que as plataformas ganharam o peso que hoje têm porque durante muito tempo foram vistas como estruturas essencialmente benevolentes, o que permitiu que suas políticas algorítmicas ficassem invisibilizadas. Porém, isso mudou em 2014, após vir à tona o escândalo envolvendo o Facebook e a empresa Cambridge Analytica em torno da coleta de dados de 87 milhões de usuários.

"De lá para cá, as plataformas passaram a mostrar as suas garras, a exercer a sua atuação de uma maneira mais ativa e ameaçadora, e isso traz problemas de médio e longo prazo", afirma Albuquerque.

Ele explica que antes as redes sociais se orientavam para cumprir um modelo normativo contra, alegadamente, a desinformação, mas a ascensão de Trump rompeu com essa norma.

"Trump chutou esse discurso por razões de política interna, mas é aquilo, quando você mexe em uma peça, todo o tabuleiro se modifica, e é o que está acontecendo agora."

Albuquerque afirma que essa ruptura é demonstrada no imbróglio envolvendo a rede social chinesa TikTok, que é acusada pelo governo Trump de espionagem e pressionada a vender suas operações nos EUA, o que denota "uma política de parâmetros duplos".

Entretanto, o cientista político considera que "o conteúdo postado por usuários nas plataformas é menos relevante que a questão da interferência algorítmica".

"Para mim, a questão do conteúdo divulgado pelos usuários não é tão relevante quanto o poder das plataformas de construir agenda pública, determinar a agenda do debate, dar visibilidade a determinados personagens, através da sua mediação algorítmica", afirma o especialista.

Segundo ele, esse poder das plataformas obriga que outros países tomem atitudes em resposta.

"E é importante dizer que isso não se aplica apenas aos países do chamado Sul Global. Por exemplo, o Canadá aprovou uma regra de regulamentação que obrigava as plataformas a remunerar o conteúdo jornalístico, e as plataformas simplesmente excluíram todo o conteúdo jornalístico do seu escopo. Isso é rigorosamente censura. Então nós temos um processo de censura exercida por agentes transnacionais que não obedecem a nenhum tipo de regulamento. Isso suscita reação, é inevitável."

Albuquerque avalia que apenas uma regulamentação da internet não é capaz de solucionar o problema das redes, porque é uma medida que "ocorre dentro das fronteiras do Estado nacional, e as plataformas operam para além dessas fronteiras".

Ele considera que uma solução factível seria a criação de plataformas transnacionais, construídas a partir de modelos de acordo, de governança internacional, que estabeleçam princípios e mecanismos de gestão compartilhada, de forma similar às de outros mecanismos internacionais, para conter o que ele aponta como "ameaça existencial".

"As plataformas hoje são uma ameaça existencial à democracia em boa parte dos países do Ocidente e também do mundo majoritário, que é o conceito correto para Sul Global."

Isabela Rocha, pesquisadora no Instituto de Ciência Política (Ipol) da Universidade de Brasília (UnB), coordenadora do grupo de trabalho Estratégia, Dados e Soberania, do Grupo de Estudos e Pesquisas em Segurança Internacional (GEPSI), do Instituto de Relações Internacionais (Irel) da universidade, e presidente fundadora do Fórum para Tecnologia Estratégica dos BRICS+, afirma que "o que está em jogo é a nossa soberania".

"Porque o principal motivo pelo qual tem essa disputa, para início de conversa, é que dados são um insumo muito valioso hoje em dia. E o que acontece é que esses dados, brasileiros inclusive, estão sendo sediados no Norte Global, e bem especificamente dentro de corporações americanas que estão hoje muito alinhadas com o governo Trump", explica.

"Você, tendo dados, consegue criar estratégias políticas informadas, que podem de fato mudar o destino de um país. Então, na verdade, eu acho que essa questão da soberania é central para o arranjo político internacional contemporâneo."

Rocha afirma que as big techs atualmente são capazes de processar, armazenar e cuidar de todos os dados e, através disso, criar estratégias informadas e conseguir, de maneira estratégica, influenciar países cultural e politicamente.

"Então é muito importante essa aliança que existe entre as big techs e o governo americano, é o que eu e alguns colegas da pesquisa estamos chamando de 'metatrumpismo'."

Segundo ela, as plataformas deveriam ser responsabilizadas pelo conteúdo existente nelas porque, em teoria, deveriam estar fazendo a moderação desse conteúdo.

"As plataformas precisam ser responsabilizadas, sim. Até porque, na maior parte delas, a gente não entende como funciona o código interno, porque eles são ocultos. Não existe essa tradição de abrir a caixa-preta das plataformas. Então eu acho que esse é outro problema que a gente precisa abordar", acrescenta a especialista.

Ela diz ser importante notar que a questão não está relacionada à censura, mas sim à proteção, pois crimes precisam ser imediatamente investigados, o que inclui crimes em plataformas de internet.

"E, se a plataforma é fechada, demora para atender a uma decisão judicial brasileira, a gente não está conseguindo fazer valer a nossa lei. Então, na verdade, a gente não está pensando em termos de censura, a gente está pensando em termos de fazer com que a nossa lei seja cumprida e impedir que entidades estrangeiras estejam acima dela."

Rocha destaca que o governo Trump coloca os interesses dos EUA acima das plataformas, o que pode ser observado no imbróglio envolvendo o TikTok. Ela afirma ser interessante notar que "a única soberania que Trump parece reconhecer é a soberania americana".

"Então, no que diz respeito ao TikTok, os EUA estão colocando os interesses dos americanos à disposição, e ele se utiliza de qualquer narrativa que convém para poder fazer com que os EUA e suas empresas continuem exercendo autoridade no resto do mundo", afirma.

Para ela, a solução para o Brasil seria desenvolver infraestruturas de internet próprias, tanto em nível de hardware, com, por exemplo, satélites, data centers e redes de conectividade, quanto de software, com aplicativos próprios, inclusive de troca de mensagens e redes sociais.

"E, mais importante de tudo, que os dados brasileiros, do governo, do Estado, das polícias, dos militares, sejam rodados por softwares que são brasileiros, em vez de serem processados em softwares que são de empresas americanas", conclui a especialista.

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