Venho por meio desta revelar um momento meio troncho que vivi, quando um mico monstruoso me fez sentir como nos versos finais de “Ansiedade”, samba antológico do Paulinho da Viola: “Há tempo que ele nasce e morre/No espaço breve que eu lhe faço ser”.
Pois é, Joyce, após o ocorrido, e durante um espaço de tempo nem tão breve, arrastei corrente feito um fantasma apalermado, remoendo o “King Kong”, sem lhe dar espaço para “morrer” em paz.
Ô Joyce, segura a onda aí um tiquinho, preciso revelar pros leitores o meu “vacilo monstruoso”.
Foi assim: em 2017, ao comentar “Palavra e som” (Biscoito Fino), o então recém- -lançado CD da Joyce, escrevi: “(...) Parecia-me impossível que ela agregasse ainda mais qualidade à sua arte... mas ela assim fez: nesse novo disco, pela primeira vez, ela escreveu versos (...)”. NÃO, Aquiles! Joyce escreve versos desde 1968! Pano rápido.
Bem-humorada, Joyce me escreveu. Li o “sabão”. Respondi. Ela retrucou... Mas o que dizer se o meu vacilo era “batom na cueca”? Calei.
Eis que hoje tenho na mão o CD “50” (Biscoito Fino), trabalho com o qual Joyce comemora 50 anos de carreira. Só que ao ler a contracapa, tremi... Vejam a ironia, leitores: no CD estão regravadas todas as músicas do primeiro LP da Joyce, lançado em 1968, cuja metade do repertório é de músicas e letras (!) só dela. Vão vendo o tamanho da encrenca que arrumei.
Daí peguei minha corrente e voltei a arrastá-la pela casa. Até que explodi, “Caramba! Eu sou um homem ou sou um rato?” Medo de vacilar de novo.
Finda a carta, vamos lá.
Joyce é mulher sem meio-termo: se é pra compor e escrever arranjos, haja criatividade; se é pra tocar violão, vixe, arrasa; se é pra cantar, meu Deus, encanta.
A concepção de “50” é coisa de gênio: trazer grandes músicas gravadas em 1968, quando se é jovem, imaturo musicalmente, quando a tecnologia ainda é precária e os objetivos para o futuro ainda estão por se definir, propiciou um jorro criativo trazido à cena musical contemporânea, com os recursos técnicos de 2018. Corajosa, ela foi buscar em si mesma o sentido da (sua) música.
Tendo boa base instrumental – Tutty Moreno (batera), Helio Alves (piano) e Rodolfo Stroeter (contrabaixo) –, o dom musical de Joyce está total em “50”.
Ela tocou violão e escreveu arranjos para nove das 13 faixas, como “A velha maluca”, samba no qual ela expõe outro dom: troçar consigo própria; “Com o tempo” (dela e de Zélia Duncan), na qual Zélia também canta; e “Anoiteceu” (Francis Hime e Vinícius de Moraes), num duo vocal de Hime com Joyce, e belo intermezzo do piano de Helio Alves.
E mais, “Ansiedade” (Paulinho da Viola), de onde pesquei os versos lá do início; “Litoral” (Toninho Horta e Ronaldo Bastos – arranjo e show de Horta no violão) e “Ave Maria” (Caetano Veloso), arranjo vocal de Flávio Mendes e vozes do ótimo grupo Equale e de Joyce.
Todos os seus dons desaguaram em “50”, obra consistente, criada com a dignidade e o talento de uma grande música brasileira: Joyce Moreno.