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O estranho mundo quântico

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Imaginemos um jogo de bolas de gude quânticas. A búlica está atrás de um muro de terra com apenas dois orifícios por onde a bola irá passar. O jogador está de olhos vendados e um dos orifícios está fechado. Após muitas tentativas, o jogador consegue acertar a búlica. A seguir, o orifício é aberto e o outro é fechado. O resultado é o mesmo. Finalmente, os dois orifícios são abertos. O resultado esperado é que, com o dobro de possibilidades de passagem das bolas, o número médio de tentativas para acertar a búlica seria a metade, mas acontece algo totalmente inesperado: por mais que o jogador tente, ele nunca acerta a búlica! Pior, se aparecer alguém para olhar por qual orifício a bola passa, o jogador acerta a búlica com a frequência esperada!

Em 1927, no congresso de Solvay, na Bélgica, esses estranhos fenômenos foram exaustivamente discutidos pelos físicos. Todos sabiam que a situação descrita acima, embora envolvendo bolas (partículas), é típica dos fenômenos ondulatórios. Portanto, havia o consenso de que uma onda estaria associada a esses fenômenos, mas qual o seu papel? O físico francês Louis de Broglie (1892-1987) propôs que associada à partícula existiria uma onda que informa à partícula tudo sobre o que está a sua volta (tal como o número de orifícios abertos ou se alguém está observando). O físico austríaco Erwin Schrödinger (1887-1961) sugeriu que as partículas seriam pacotes de onda localizados. Finalmente, os físicos alemães Max Born (1882-1970) e Werner Heisenberg (1901-1976) propuseram que o mundo quântico seria um mar de potencialidades que só teriam realidade através de alguma observação concreta. A onda descreveria a probabilidade de um determinado acontecimento potencial se tornar real através de um experimento.

Durante aquela conferência não se chegou a um consenso sobre a melhor maneira de abordar os fenômenos quânticos. Entretanto, uma postura pragmática foi adotada e a terceira opção foi escolhida. A partir daí a maioria dos físicos se preocupou muito mais em aplicar a teoria aos mais variados domínios e testá-la experimentalmente (com grande sucesso) a partir do algoritmo mínimo de produção de resultados com o qual todos concordavam do que investigar questões fundamentais a respeito deste algoritmo. Esse império conceitual e prático, impulsionado pela produção da bomba nuclear e consonante com a visão pragmática do capitalismo do pós-guerra, tornou-se tão poderoso que qualquer tentativa de questioná-lo ou entendê-lo com mais profundidade era considerada pelos físicos como sendo do território da metafísica ou, mais extremista ainda, como sendo uma filosofia absolutamente supérflua.

Felizmente, alguns físicos continuaram buscando um entendimento mais profundo dos fenômenos quânticos, produzindo artigos cruciais para o desenvolvimento da teoria quântica, realizando novos resultados experimentais que nunca teriam sido sequer pensados se não tivesse havido esses questionamentos. Hoje pode-se dizer que existem várias formas alternativas de entender os fenômenos quânticos, sem nenhuma preponderância de uma sobre a outra. Cada uma delas possui virtudes e lacunas, mas nenhuma é suficientemente completa para se tornar consensual.

Devemos enfatizar que as discussões e críticas propostas por diversos cientistas não são questões metafísicas inconsequentes. Elas podem, sim, ser consideradas com seriedade, levar a uma compreensão muito mais profunda da teoria quântica, com resultados experimentais concretos. A cosmologia pode ter um papel importante nessa empreitada. De fato, o Universo pode não ter tido um começo se efeitos quânticos forem considerados na sua evolução, com possíveis consequências observacionais.

Finalmente é importante dizer que todos esses estranhos fenômenos quânticos não ocorrem nas escalas de tamanho e temperatura nas quais vivemos. A interação das partículas quânticas em um ambiente contendo um número imenso de outras partículas quânticas faz com que o comportamento global do sistema seja clássico, isto é, convencional. Por isso, uma bola de gude normal jamais apresentará o comportamento das partículas quânticas descrito no início deste artigo.

* Pesquisador titular do CBPF