Incêndios acontecem em toda parte. Porém, quando se lê sobre falhas em ar-condicionado ou eventual curto-circuito, provocando pequenos ou grandes sinistros, não se cogita na culpabilização de vítimas, nem de causas indiretas, como o esvaziamento de centros históricos, questão fundiária ou habitacional.
Mas sob um viés legalista tem sido visível a presunção de que ocupações geram incêndio, ou, tendo em vista a abundância de prédios vazios, tornam-se não só um direito, mas solução.
Esvaziamento urbano é algo típico de cidades em retração, como o Rio. São Paulo, porém, não sofre retração ou retraimento. Funciona em verdade como vórtice nacional, pois não pode parar.
Por contradição, tem uma quantidade incrível de imóveis vazios, criados por um processo perverso, pelo qual a cidade se torna produto e prédio ou bairro não serão diferentes de uma geladeira ou carro. Obsolescência programada urbanística.
Algo semelhante também ocorre na face miserável do planeta. Por um processo mais perverso ainda, a população pobre vai morando cada vez mais longe, trocando áreas infraestruturadas por outras carentes de tudo, ou, simplesmente, asfalto por favela. É o que faz com que cidades que não crescem, cresçam, e, onde a população total diminui, as favelas aumentem.
Se digo que um país é o maior exportador de proteínas do mundo, ninguém se espanta de que haja déficit proteico na mesa da maioria, mas se eu disser que há mais imóveis vazios do que domicílios favelados... Continuar-se-á falando de crise da moradia, problema habitacional.
Não existe problema habitacional. Pronto. Falei. Existe pobreza urbana. Já vi municípios em que a população absoluta caía, enquanto surgiam favelas nos distritos-sede.
As próprias favelas também caem... pegam fogo. Principalmente quando eram feitas de madeira e iluminadas com lampião, como provam os sambas antigos, em que telhados de zinco cobriam candeeiros e algumas das mais lindas canções da música brasileira.
Nada disso é, portanto, novo. A Praia do Pinto pegou fogo há décadas, abrindo espaço à gentrificação do Leblon, assim como ocorreu com a Favela do Esqueleto, demonstrando que nem mesmo ocupar estruturas ociosas chega a ser algo inédito. O que torna espantosa uma ocupação que resulta em sinistro?
Arrisco: a reversão de tendência; a inversão de fluxos e, portanto, de expectativas. O empobrecimento, já vimos, é centrífugo, mas se começar a voltar (ou revoltar) aos centros, ainda que relegados a áreas de reserva do capital imobiliário, a questão estarrecerá: tem pobre morando em edifício. Só então as condições se tornam inabitáveis. Curto-circuito, parede inflamável, botijão que explode... surgirão como algo degradante. E inusitado.
No Rio, entretanto, a retração urbana tem uma relação dialética com a desindustrialização e, simbolicamente, algumas estruturas fabris, elas próprias, se favelizam. As ocupações tomam até nome das fábricas: Kelson, Borgauto, CCPL... Mas favelas, há mais de século, graças aos morros, ocuparam os interstícios da cidade, criando verdadeiras acrópoles. “Morar no morro” tem aqui um significado especial.
São Paulo, embora “sobre sete colinas”, não possuindo acrópoles, levantou zigurats – as montanhas artificiais das planícies mesopotâmicas. Sua Torre de Babel simbólica: o prédio do Banespa, ocupado por um banco privado, ainda ostenta, leviano, o pendão bandeirante.
É, pois, a imagem de um zigurat desmoronando, patrimônio municipal protegido, ícone modernista, que fez com que se soubesse que gente que não usa black-tie tope pagar aluguel, correndo o risco de ser incinerado.
Mas vítimas não escolhem algozes. Pagam.
* Arquiteto e urbanista DSc.