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O sonho de Descartes

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Penso, logo existo. Princípio primeiro dentre os princípios assinados indelevelmente por Renée Descartes (1596 – 1650) em sua obra seminal “Princípios Filosóficos”, essa pequena sentença validaria historicamente o processo de pensamento como garantia de existir na realidade do mundo, e, portanto, de acesso à verdade. O pensamento, para Descartes, se confundia com a dúvida, que chamaria o sujeito à razão e assim o colocaria em condições de selecionar objetivamente uma dentre múltiplas possibilidades de explicar os fenômenos e as coisas do mundo, suas ordens de estruturação, suas leis imutáveis. Firmava-se, assim, a grande revolução na história do conhecimento humano. 

Se pararmos um pouquinho para refletir sobre essa proposta, perceberemos em Descartes uma preocupação com a contradição entre a fluidez do imaginário, típica do pensamento e necessária à formulação de explicações sobre o mundo, e a presumível rigidez das leis físicas que regeriam a estrutura e o funcionamento deste mesmo mundo, garantindo-nos a previsão de resultados físicos a partir de relações de causa e efeito.  Descartes, então, identificou a dúvida como um modo de pensamento que resolveria esse impasse. Surpreendentemente, essa conclusão visionária, resumida, hoje, como pensamento cartesiano, teria surgido a partir da interpretação simbólica que Descartes teria feito de uma sucessão de três sonhos, conforme relatado por seu biógrafo Adrien Baillet (1649-1706).  

Nos sonhos de Descartes (como nos nossos), a dúvida estaria ausente; as situações que, se vividas em estado acordado, figurariam como absurdas, eram percebidas sem contestação de coerência durante o sonho, pois confirmadas somente pelos sentidos, estranhamente ativos no imaginário da consciência de sonho, enquanto a razão crítica permaneceria adormecida. Descartes, então, associou a capacidade de duvidar à certeza de estar acordado. Uma vez acordados, estaríamos mergulhados na realidade física e, portanto, disporíamos de meios para checar racional e objetivamente a validade de nossas teorias sobre as verdades, que imaginamos, estruturariam nosso mundo.  O pensamento ancorado na dúvida, e não na possibilidade ilusória dos sentidos, figuraria como sistema básico de razão aplicada à revelação de verdades do mundo. Um abismo entre sujeito e objeto, corpo e mente, razão e afeto/emoção/estética se abriria desse momento em diante. 

Quase quatro séculos mais tarde, o que a ciência tem a dizer sobre o equívoco dos sentidos e a independência da mente?  Afinal, que pensamento de razão é esse que experimentamos quando estamos acordados?  Paradoxalmente, o avanço das ciências experimentais, sobretudo das neurociências, que passaram a debruçar-se sobre nossos sujeitos humanos, vem determinando, de forma emblemática o fim do dualismo cartesiano com a constatação de que o corpo, e os sentidos, incorporam a mente. 

Paulatinamente, nos vemos forçados a abandonar a dicotomia razão/afeto diante das evidências experimentais de que nossas abstrações mentais são propriedades funcionais de nossos corpos. Pensamentos e sentidos não se definiriam como processos independentes, autônomos, de uma máquina humana, mas sim aspectos naturalmente indissociáveis de nossa experiência de mundo, indissociabilidade esta que se reafirma cientificamente em níveis que vão das células ao comportamento humano. 

Historicamente classificados como recursos rejeitáveis no fazer científico, os atributos ditos subjetivos de nosso acesso à realidade física de mundo, marcados por aspectos de processamento consciente e não consciente, estão à nossa disposição como recursos axiais da imaginação criativa na ciência.  Revelam-se frequentemente como catalisadores do fazer científico.  Nossa ciência é sensível pela condição inescapavelmente humana que a sustenta. E isso não deve nos surpreender. Não nos esqueçamos que a ciência, como a entendemos hoje, nasceu de sonhos, dos sonhos de um homem, a ciência dos sonhos de Descartes.

* Professora associada da UFRJ