ASSINE
search button

No Rio de Janeiro, está decretada a pena de morte

Compartilhar

Não é novidade: a vida de quem mora em favela não está resguardada, na prática, por nenhum dispositivo constitucional. Para o morador que é assassinado pelo simples fato de estar onde mora, se atribui ao destino o azar de uma “bala perdida”. E, quando a morte é de jovens envolvidos no varejo da droga, é comum entre nós a ideia de que “encontraram o que procuravam”.

Esse mantra que se repete na imprensa e nas conversas faz aceitar, sem questionamento, a justificativa da polícia e anula qualquer possibilidade de pensar se atirar era a única ação cabível. A isso, junta-se o preconceito existente sobre as favelas e sua gente, produzindo um conformismo generalizado que autoriza a polícia a julgar e executar a sentença definida por ela. Os dados confirmam. De acordo com o aplicativo Fogo Cruzado, de fevereiro a agosto foram 5 mil tiroteios na Região Metropolitana do Rio. O resultado: mais de 600 mortes por ação policial foram registradas até julho de 2018, segundo o Observatório da Intervenção.

Há poucos dias, logo ao amanhecer, foram ouvidos tiros no alto do Santa Marta. Fato que não é novidade para quem mora lá. A mudança na dinâmica da atuação da UPP, ou o que restou dela, tem obrigado os moradores a conviver com tiroteios ao raiar do dia. Felizmente, na maioria das vezes, depois de muitos tiros, a vida volta à sua rotina. Mas na manhã do dia 15 de agosto foi diferente.

Os tiros começaram e não duraram muito. Logo, um silêncio tenso tomou conta dos caminhos e becos que já não tinham a movimentação dos moradores. Aqueles que conseguiam descer a favela traziam a noticia: a polícia matou um menino. É assim mesmo, as primeiras informações são imprecisas: quem morreu? Filho de quem? Era da boca? E, aos poucos, o fato vai sendo esclarecido: “o moleque estava na vigia da boca. Tentou correr. Ganhou um tiro no meio da cara”.

O jornal anuncia: “Suspeito é baleado durante confronto com PMs no Morro de Santa Marta” – informação passada pela própria polícia. Ao ler, uma moradora reage: “É mentira. Houve somente um disparo na manhã de hoje. Sei, porque tudo aconteceu bem na minha janela”. A notícia corre rápido. A família é acionada. Mãe, padrasto e irmãos vão ao hospital e confirmam a morte do garoto. Só resta organizar o sepultamento. Alguns moradores ficam indignados com a brutalidade. Outros, aceitam. Mas a pergunta é: a polícia não tinha outra possibilidade de agir? O objetivo era prender, paralisar ou matar?

Talvez quem está lendo diga: “Mas e se fosse um policial morto?”. Um discurso que se repete como se os moradores de favela gostassem de viver no crime, na desordem, no ilícito. Esquecem de que a favela foi a solução encontrada por trabalhadores que não tinham onde morar e que, ainda hoje, lutam para garantir um teto para suas famílias. As favelas se constituíram a partir das iniciativas e da competência de seus moradores que lutaram, reivindicando o direito de permanecerem onde estão, hoje, com um pouco mais de infraestrutura. Nessa dinâmica reincidente de violação de direitos e barbárie, o mais dramático é que quem mora nessas áreas não tem o direito de viver seu luto.

Dias depois do assassinato no Santa Marta, as forças de segurança fazem uma operação nos complexos da Penha, Maré e Alemão. É a Intervenção Federal justificando sua presença. E, mais uma vez, contamos os corpos. No Alemão, o saldo conhecido até agora é de 17 pessoas mortas. Mas segundo o relato de moradores, há corpos ainda não recolhidos na mata. Um vídeo que circula nas redes sociais mostra um grupo de moradores, como que em procissão, à procura de parentes ou conhecidos que poderiam estar mortos ali. Tensão, desespero e impotência.

A dor de todos os que morrem ou que perdem alguém nessa barbárie tem que ser de todos nós. A sociedade precisa defender urgentemente o direito à vida, em particular, nas favelas. Defender o direito ao luto. Afinal, se não pudermos chorar a dor pela morte de alguém querido, quando nos será permitido ter voz?

* Coordenador do Ibase