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Abandonado pelo poder público, conjunto inspirado no Lego se deteriora na Maré

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O brinquedo Lego, aquele em que peças se encaixam de diferentes maneiras, foi a inspiração de três arquitetos para projetar o Conjunto Habitacional Nova Maré, na Favela da Maré, concebido para abrigar moradores de palafitas do bairro, nos anos 1990. No escritório de arquitetura, Demetre Anastassakis, Valéria Hazan e Andrea Fiorini imaginaram as montagens do Nova Maré manejando os blocos de fabricação dinamarquesa de sucesso mundial. O resultado impressiona por levar beleza à moradia popular. O conjunto, contudo, foi desfigurado pelos moradores, colocando em xeque a política pública elaborada no então governo do prefeito Cesar Maia. “Faltou uma maior interlocução entre os agentes públicos, os arquitetos e a comunidade atendida. Este pra mim é o problema central. Não adianta o técnico definir os melhores padrões estéticos ou as melhores tipologias sem combinar com quem vai morar ali”, disse Lucas Fauhaber, coordenador de políticas urbanas do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio de Janeiro (CAU-RJ), que também vê qualidades no projeto:  “O Nova Maré mostra que habitação popular não precisa ser feia. O projeto claramente tem um apelo estético”.  

O arquiteto Demetre Amastassakis reconhece que a participação dos moradores no projeto seria fundamental: “Não se pôde fazer um trabalho social de pré e pós morar, não tendo os moradores virado sócios ou cúmplices do projeto”. O pedreiro Pedro Sampaio é um dos que mais modificaram o lego arquitetônico. Ele reclama que, do jeito que foi desenhado, o conjunto dificulta novas construções. “Fiz paredes onde, antes, existiam vazios. As famílias precisam de mais quartos, mais salas, mais banheiros”, diz ele. 

Morador da Maré, o geógrafo Lourenço Cezar da Silva diz que, no Censo da Maré realizado pelo Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM), o Conjunto Nova Maré concentra, com suas 600 unidades habitacionais, famílias com uma das rendas mais baixas entre as 16 localidades da favela. Para ele, o tipo de construção ali não favorece os moradores a aumentar seus recursos. “Um aspecto interessante do conjunto habitacional é a semelhança com uma favela de morro, mesmo tendo sido construída em terreno plano. O estranho é que uma das características mais importantes da favela ficou de fora: os vergalhões nas lajes da casa. E isso faz toda diferença. A maioria das casas em favelas leva muito tempo para ser construída, e a presença do vergalhão exposto demonstra o desejo de ampliar esse domicílio”, afirma Lourenço Silva, que explica o porquê desse desejo: “Para os pobres uma casa não é só uma casa. Ela serve de estratégia familiar para superação da própria pobreza. Um domicílio em favela pode virar muita coisa: um espaço compartilhado como casa e bar; casa e quartos de aluguel; casa e oficina de diversos tipos de empreendimentos; ou um espaço de várias casas de uma mesma família”, enumera. 

Uma das autoras do projeto, a arquiteta Valéria Hazan, atual subsecretária municipal de urbanismo da capital, ressalta que o Conjunto Nova Maré não teve o acompanhamento necessário do poder público.  “Sem assistência técnica, as famílias foram desfigurando o conjunto”, diz ela. 

Para Faulhaber, do CAU, embora o Nova Maré tenha fugido à regra dos grandes conjuntos habitacionais construídos ultimamente no Rio (extremamente afastados dos locais de origem das famílias), faltou ao Nova Maré a previsão das dinâmicas familiares e econômicas. “Em razão dessa intensa dinâmica, não podemos pensar que a política habitacional se encerra na entrega das casas. Entre outras coisas, faz-se necessário um acompanhamento técnico constante que possa orientar as possibilidades de modificação do espaço sem colocar em risco as habitações”, diz Faulhaber. 

Dessa forma, o conjunto originário de um famoso brinquedo perdeu totalmente a graça. Lourenço Silva demonstra a desarticulação: “Aos olhos de quem passa pela Linha Vermelha, pode até parecer uma arquitetura bonita e interessante, mas, na visão e experiência dos moradores, a ideia é a de que moram em uma casa de brinquedos, apelidada por eles de Lego, na qual, dependendo da peça ou tijolo que o morador tirar do lugar, todas as outras casas podem cair tal qual o brinquedo”. Pela beleza, o Lego da Maré ainda merece um melhor encaixe.

>> Artigo - Direito à arquitetura