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Facundo Cabral: daqui, de lá, de Deus

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      Não sou daqui nem de lá, cantava o cantor e compositor Facundo Cabral, argentino de La Plata, província de Buenos Aires, nascido em 1937 e assassinado na Guatemala, agora, dia 9 de julho, data nacional de seu país. Calou-se a voz do trovador, que depois de uma difícil trajetória por uma infância e juventude pobres, uma viuvez trágica acontecida aos 40 anos, conquistou os corações de milhares e milhares de admiradores que hoje choram sua perda.

    Facundo nasceu e morreu migrante e errante, nem daqui nem de lá, como cantava em seu maior sucesso musical “No soy de aqui, ni soy de allá”. Um dia antes de seu nascimento, o pai de Facundo abandonou a casa, esposa e sete filhos. O oitavo - Facundo - nasceu nas ruas de La Plata, pois, após a partida do filho, o avô paterno expulsou nora e netos de sua propriedade. De La Plata mãe e filhos emigraram para a Terra do Fogo, extremo sul da Argentina.

     A infância pobre e desprotegida levou Facundo à marginalidade e ao reformatório quando ainda jovem.  O álcool onde afogava suas mágoas e dores o fez ser violento e considerado perigoso para a liberdade.  Na prisão, um jesuíta o ensinou a ler e escrever, e o jovem inteligente e inquieto tomou contato com a literatura universal, terminando o curso primário e secundário em tempo recorde.

     Foi um vagabundo errante e errático como ele, companheiro da rua, que o fez conhecer a religião, despertando sua espiritualidade sem pertença institucional alguma.  Segundo ele mesmo, “comecei a cantar com a gente simples... E no dia 24 de fevereiro de 1954, um vagabundo me recitou o Sermão da Montanha, e descobri que estava nascendo.  Corri para escrever uma canção de ninar”.

     Assim começou o amor pela música e a carreira musical, em um hotel de Mar del Plata.  Mas foi em 1970 que gravou seu maior sucesso, “No soy de aqui ni soy de allá”, que o projetou internacionalmente e o fez ser traduzido em nove idiomas. Juntamente com o talento artístico, Facundo Cabral era alguém profundamente espiritualizado.  Citava entre suas maiores influências Jesus de Nazaré, Mahatma Gandhi e Madre Teresa de Calcutá. E literariamente reconhecia paternidade em Borges e Walt Whitman.

     Suas letras e canções são marcadas por uma observação comprometida e militante, inconformada e crítica.  Tudo isso o fez ser persona non grata por parte da cruel ditadura argentina, que perdurou de 1976 a 1983. O talentoso cantor errante teve que exilar-se no México, continuando ali sua carreira musical, sempre itinerante, percorrendo lugares e países, levando sua música.

     Regressou a Buenos Aires em 1984, dando shows multitudinários com enorme sucesso. No peito de Facundo, uma ferida sangrou até sua morte, que foi ter perdido tragicamente a mulher e a filha em um acidente de avião. Novamente sem lar como quando nascera, Facundo passa a residir em quartos de hotel, enfatizando ainda mais a errância que o caracterizava.

     Assim se descrevia quando completou 70 anos: “Foi mudo até os nove anos, analfabeto até os 14, enviuvou tragicamente aos 40 e conheceu seu pai aos 46. O mais pagão dos pregadores completa 70 anos e repassa sua vida em um quarto de hotel que escolheu como última morada”.

     Facundo Cabral tinha 74 anos ao morrer, assassinado, no dia 9 de julho, enquanto seu país celebrava a festa nacional. Havia dado grandes recitais na capital da Guatemala nos dias 5 e 7, aplaudido por centenas de fãs.  Partia para a Nicarágua quando foi brutalmente assassinado por um grupo de homens armados de metralhadoras.     Apenas a morte imobilizou o inquieto peregrino e viajante que não era daqui nem de lá.  A violência assassina das pobres cidades latino-americanas dirigiu-se contra ele e interrompeu seu canto. O mundo que amava sua música contempla estarrecido essa morte brutal, que há muito vitima e fustiga os pobres, e que parece agora lançar-se  também contra os artistas.     Facundo, que não era daqui nem de lá, agora é totalmente de Deus, do Deus que buscou sem cessar, desde a infância desprotegida e pobre até a errância solitária e nostálgica da companheira e da filha que se foram antes da hora. Calou-se o cantor, mas não o canto.  Este ficará para inspirar e mobilizar aqueles que como ele ainda acreditam que o sonho de Deus pode realizar-se neste mundo se não formos tão distraídos que sejamos incapazes de escutá-lo.

Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, é autora de 'Simone Weil - A força e a fraqueza do  amor' (Ed. Rocco)