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Nelson Cavaquinho, profissão boêmia

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Não se sabe ao certo se foi em 28 ou 29 de outubro de 1911, no aristocrático bairro de São Cristóvão, Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro, que nasceu Nelson Antônio da Silva, herdeiro do tocador de tuba Brás Antônio da Silva, contramestre da Banda da Polícia Militar, e de Maria Paula da Silva, lavadeira do Convento de Santa Teresa. Alguns anos mais tarde, o filho de seu Brás e dona Maria se tornaria o afamado Nelson Cavaquinho, em alusão ao instrumento musical que, por ironia do destino, não o tornaria célebre, vez que optara pelo violão, cujas cordas de aço eram inconfundivelmente manuseadas por apenas dois dedos de sua mão direita.  

Devido às dificuldades financeiras, abandonou os estudos no terceiro ano primário para labutar na fábrica de tecidos. Em 1931, próximo aos vinte anos, conheceu Alice Ferreira Neves. Tempos depois, arrastado pelo pai da cabrocha à delegacia, une-se àquela que lhe daria quatro filhos. Diante da necessidade de sustentar a família, graças a um pedido do progenitor que falsificara a sua idade, o soldado Silva ingressa nos quadros da Polícia do Rio de Janeiro.

O ofício de guarda cavalariano causou certa desconfiança entre becos e malandros, até que conheceu Cartola, que desvendaria um dos maiores enigmas do mundo do samba: por que não existem parcerias musicais entre os dois maiores sambistas de todos os tempos, ilustres contemporâneos e assíduos frequentadores de um mesmo convívio social? Seria ciúme de mulher, parada de jogo, briga de bebedeira, rivalidade de bambas, incompatibilidade de gênios...

Reza a lenda que Cavaquinho fez a primeira parte de um samba e perguntou se Cartola poderia acabar de escrever os versos que havia iniciado ao violão. O parceiro terminou o samba e, bebendo, cantaram até alta madrugada. No dia seguinte, encontrou um sujeito, que lhe perguntara se queria ouvir uma canção que era uma maravilha e tal. Que sim, disse. Mais que depressa, o malandro percebeu que o homem cantarolava a tal canção... Comentou que o samba era de sua autoria, e ouviu como resposta do falso compositor que a música era toda dele, porque havia acabado de comprar do Nelson Cavaquinho.

Ao interpelá-lo, Cartola dissera que não queria mais assunto com o sambista, porque fizera a música, e ele foi vendê-la sem sua autorização... O parceiro argumentou que estava sem dinheiro, mas mesmo assim jurou que só negociara a sua parte da composição. De outra feita, o compositor, ao conhecer Cartola na quadra da escola de samba, ficou um bom tempo de conversa até que o seu cavalo desaparecera. Resolveu retornar ao Batalhão sem o companheiro, o que decerto ocasionaria mais uma de tantas outras detenções. Quando disse ao superior que havia perdido o animal, o sargento apontou a cocheira com o nariz a mostrá-lo cheio de alfafa e empáfia, como que rindo da situação. Foi logo dizendo que ele perdera, sim, hora e compostura.  “E não o fiel e ordeiro vovô, soldado”.

Diz que Nelson Cavaquinho sonhou que morreria às três horas da manhã. Numa ocasião bebeu umas e outras e, ao voltar a casa, imaginou que se anunciava a fatídica data da partida. Num ato de desespero, quando deu cinco para as três, levantou-se num salto e atrasou o ponteiro para meia-noite. Outra prática comum era a de emprestar a parceria em troca de algum dinheiro, camaradagem ou guarida. Ao que parece o autor de A flor e o espinho afeiçoou-se a comercializar composições que, de tanto vender o mesmo samba, a canção passou a ter mais de quinze autores diferentes.

Nos idos de 1955, no Cabaré dos Bandidos, conheceu Guilherme Brito, que afirmara saber que o compositor tinha um samba gravado por Ciro Monteiro, intitulado Rugas, parceria com Augusto Garcez e Ary Monteiro. Era uma das músicas que Vinicius de Moraes e Carlos Jobim pediam que cantasse nos bares da Zona Sul do Rio. O boêmio caboclo perdulário vagava pelas ruas da cidade disposto a distribuir dinheiro aos mendigos e prostitutas, até que, no início da década de 60, conheceu Durvalina, trinta anos mais nova, com quem viveu até a sua morte, a 18 de fevereiro de 1986, vitimado por um enfisema pulmonar.

Creio eu que, quase sem querer, o hábito do ilustre sambista de ludibriar o tempo nos obrigaria a eternizá-lo muito além de seu centenário. Enfim, se a morte não atrasa o relógio da vida, nós, seus eternos admiradores, contemplamos saudosos dos teus timbres roufenhos, as encaracoladas madeixas prateadas e o velho terno roto e esfarrapado que, por sinal, "peço-te emprestado para estar a caráter na festa que organizaste em mim".    

Wander Lourenço de Oliveira, ex-jogador do América, é doutor em letras e professor da Universidade Estácio de Sá