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Mais espaço à loucura criativa

Museu de Imagens do Inconsciente (MII) vai duplicar área e integrá-la ao futuro Parque Nise da Silveira, no projeto capitaneado pela Sociedade de Amigos do MII

Marcos Tristão -
As três fotos foram tiradas no ateliê do Museu do Inconsciente, onde os clientes criam com total liberdade. Oo sorridente artista explicou que desenhava um Cyborg, um dos personagens da DC Comics
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Foi uma dura queda de braço. Até o Gabinete da Intervenção Federal chegou a requisitar o espaço, de 900m², no Engenho de Dentro, na Zona Norte da cidade. No fim, porém, o Museu de Imagens do Inconsciente (MII), cuja atividade se espreme num prédio de 800 m², levou a melhor. Criado em 1952, inicialmente em uma pequena salinha, no então Centro Psiquiátrico Pedro II, hoje Instituto Municipal de Assistência à Saúde Nise da Silveira, o museu passa a incorporar o imóvel localizado nos seus fundos, onde funcionou, por 15 anos, o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Espaço Aberto ao Tempo. Hoje, o MII reúne mais de 400 mil obras em seu acervo, das quais, 128 mil são tombadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Essa duplicação do espaço vai ser anunciada na próxima sexta-feira, em grande evento organizado pela Sociedade de Amigos do MII, como parte de uma estratégia para transformá-lo no polo central do futuro Parque Nise da Silveira.

Os números sublinham os resultados do notável trabalho da psiquiatra alagoana Nise da Silveira (1905-1999, leia na página ao lado). O hospital psiquiátrico, que chegou a alojar cerca de dois mil internos, hoje tem apenas 68. A negação de Nise a tratamentos como o eletrochoque e a lobotomia, que encontrou na sua volta ao trabalho, depois de anistiada, devolveu à terapêutica ocupacional o seu devido protagonismo. A tendência ganhou força, mais tarde, com a reforma psiquiátrica dos anos 1960, iniciada pelo italiano Franco Basaglia (1924-1980). Em 2001, o Brasil entrou para este grupo com a Lei 10.216, que protege os direitos dos portadores de transtornos mentais e inicia a desospitalização acompanhada dos pacientes. “Hoje a grande maioria dos clientes, como passaram a ser chamados, está em residências terapêuticas municipais”, explica a diretora, Erika Silva.

Todo este acervo, já exposto em mais de 100 mostras no Brasil e no exterior, vai passar a respirar, com a duplicação da área construída e o movimento liderado pela Sociedade de Amigos do MII, criada em 1974, responsável pela instalação do museu em sua sede atual, em 1981. A divulgação das novidades está inserida na programação da Semana dos Museus, evento nacional promovido pelo Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), de 16 a 23 de setembro. E, antes que alguém pergunte, Christina Penna, secretária-geral da sociedade, garante: “Tudo será feito dentro das mais modernas especificações técnicas, das normas de conservação e segurança dos parâmetros museológicos.”

Macaque in the trees
O projeto dos arquitetos Vitor Garcez e Juliana Sicuro. Ainda não há estimativas de custos, a serem bancados por renúncia fiscal (Foto: Divulgação)

Para a arteterapeuta Glória Chan, que há 15 anos acompanha a clientela do MII, a duplicação do espaço será um avanço. “Temos cerca de 50 clientes, e a grande maioria vem de fora, de bairros que vão de Campo Grande a Copacabana”, contabiliza. “Com essa duplicação, poderemos diversificar as oficinas e receber mais clientes”, comemora. É dela uma tese de mestrado sobre um dos grandes artistas que passaram por ali, Emygdio de Barros (1895-1986), carioca cuja mãe sofria de distúrbios mentais e, desde criança, sempre revelou grande habilidade manual. Formou-se como torneiro mecânico e entrou para a Marinha. Após dois anos de especialização na França, voltou ao Rio, passou a vagar pelas ruas e acabou internado no Hospício Pedro II, o primeiro do país, inaugurado pelo imperador em 1852, na Praia Vermelha. Em 1947, Emygdio passou a frequentar o Ateliê de Terapêutica, criado no ano anterior por Nise da Silveira, no Engenho de Dentro, onde deixou cerca de 3.300 obras.

Outro nome que entrou para a história do MII pela qualidade de sua produção foi Fernando Diniz (1918-1999), baiano que chegou no Rio aos 4 anos com a mãe, exímia costureira. Era o primeiro da turma, porém, abandonou os estudos e foi parar no ateliê em 1949, onde deixou cerca de 30 mil obras. “Ele pintava mandalas para organizar seu pensamento”, esclarece Glória. As obras de Emygdio e de Fernando estão entre as que foram tombadas pelo Iphan, expostas nos corredores do MII. A produção mais atual está numa sala exclusiva, no mesmo piso do ateliê. A garagem, onde Diniz modelava suas peças de barro, também será incorporada ao projeto, que vai integrar a atual sede do MII ao novo prédio.

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A sala onde ficam expostas as produções atuais dos clientes (Foto: Marcos Tristão)

Quem fala com especial carinho sobre o futuro polo Nise da Silveira é Eurípedes Júnior, vice-presidente da Sociedade de Amigos e morador do Engenho de Dentro. “O instituto fica em uma área com cerca de 90 mil m². A ideia é incorporar as calçadas à servidão [passagem] no entorno do museu e abrir a área verde à vizinhança, onde não há espaços livres ou equipamentos culturais”, diz. A criação do parque está prevista no Decreto Municipal 35879/2012. E é do presidente da associação, Marco Lucchesi, que também preside a Academia Brasileira de Letras, a frase: “A reforma psiquiátrica acabou com os hospícios, que hoje são os presídios”.

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A correspondência entre a discípula Nise e o mestre Jung

Só o fato de passar no concurso para psiquiatra, em 1933, quando ainda era raro encontrar mulheres nas faculdades de medicina, mostra o quanto Nise da Silveira era especial. A prisão, de 1936 a 1937, sob a acusação de ser comunista, a afastou do serviço público por oito anos. Quando voltou ao então Centro Psiquiátrico Nacional, no Engenho de Dentro, em 1944, encontrou técnicas violentas de tratamento, das quais discordava.

Fundou, em 1946, a Seção Terapêutica Ocupacional, método ainda considerado subalterno. Passou a organizar cursos para os funcionários até que, em 1952, o Diário Oficial nomeou, pela primeira vez em um hospital brasileiro, a função de praxiterapeuta. Foi no psiquiatra e psicoterapeuta suíço Carl Gustav Jung (1875-1961), de quem se tornou amiga, que Nise encontrou as bases para compreender as imagens que surgiam espontaneamente nos ateliês.

Abaixo, a reportagem publica a reprodução de trechos da carta enviada por Nise ao “mestre” Jung, em novembro de 1954, com reproduções dos desenhos dos internos, a primeira missiva a iniciar uma intensa troca de experiências:

“No Centro Psiquiátrico do Rio de Janeiro existe (...) um ateliê onde os doentes desenham e pintam com a mais completa liberdade. Nenhuma sugestão lhes é dada, nenhum modelo é proposto. E eis que surgem imagens primordiais em suas pinturas apresentando uma demonstração empírica e convincente da psicologia analítica. (...) Eu mal poderia expressar o quanto o estudo de seus livros tem trazido luz ao meu trabalho como psiquiatra, além de muito me ajudar pessoalmente. Creia-me sua mais humilde discípula”.

A resposta veio da colaboradora de Jung, Aniela Jaffé:

“(...)Peguntas do professor Jung: o que significam esses desenhos para os doentes, do ponto de vista de seus sentimentos? O que eles quiseram exprimir por meio dessas mandalas? Será que esses desenhos tiveram alguma influência sobre eles? Ele ainda observou que os desenhos têm uma regularidade notável, rara na produção dos esquizofrênicos, o que demonstra a forte tendência do inconsciente para formar uma compensação à situação de caos consciente. (...)”.