Anos dourados roubados

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Por ADHEMAR BAHADIAN

Prometi escrever sobre o mais pernicioso sucesso da ideologia neoliberal nas negociações econômicas internacionais: o monopólio concedido às grandes empresas farmacêuticas através da OMC (Organização Mundial do Comércio). A história é longa e exige espaço a ultrapassar em muito o de um artigo de jornal, mas procurarei apresentar a essência do problema, pois atinge em cheio a classe média, onera os cofres públicos e desnuda muito da “lorotagem" revestida de modernismo da ideologia neoliberal.

Nem sempre foi assim. Desde os chamados anos dourados, período a se iniciar no segundo governo Vargas, atingir o zênite nos anos JK, revigorar-se com a política externa independente de San Tiago Dantas e entrar em crepúsculo agônico com o golpe militar de 1964, as negociações econômicas internacionais estavam concentradas na luta contra o subdesenvolvimento.

Graças aos estudos seminais de Raul Prebisch, com a participação fecunda de Celso Furtado, os países africanos e asiáticos recém-saídos do período colonial, bem como a América Latina, se deram conta de que seria necessário mudar o sistema internacional de comércio a fim de alcançar a industrialização indispensável para o desenvolvimento econômico.

Basicamente, eram três os eixos da atividade negociadora: primeiro, corrigir a oscilação de preços dos produtos primários (café, no caso específico do Brasil), estimular a expansão da indústria de transformação nos países subdesenvolvidos e, finalmente, promover a transferência de tecnologia, instrumento indispensável e talvez primordial na luta contra o atraso econômico. O tema da transferência de tecnologia abordava a questão das patentes e seu papel no desenvolvimento do parque científico e tecnológico dos países em desenvolvimento.

Abstraindo-se os trabalhos e estudos elaborados pela UNCTAD (Organização das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento), a maior parte do esforço diplomático sobre tecnologia ocorria no quadro da Organização Mundial da Propriedade Industrial (OMPI), órgão responsável pela administração da Convenção de Paris sobre Propriedade Intelectual, criada em 1888, e da qual o Brasil era signatário original. Registra a história que fomos signatários desta vetusta Convenção por determinação de D. Pedro II, conhecido por seu interesse nos inventos, pouco antes de seu exílio com a Proclamação da República em 1889.

O cerne da Convenção de Paris era a regulação internacional das patentes de invenção, sempre idealizadas como incentivadoras do progresso intelectual. Mas, afinal o que é uma patente? Nada mais do que um monopólio que se concede ao inventor para o uso de sua invenção, como contrapartida e recompensa por sua arte, e como forma de estimular o progresso da humanidade.

Mas, a patente era concebida com dois termos inseparáveis: o primeiro deles, como assinalado acima, era o monopólio do inventor para exclusivamente comercializar universalmente seu invento por prazo entre 16 a 18 anos. O segundo elemento, determinava que após o prazo de monopólio a patente caducava e qualquer cidadão ou empresa poderia valer-se da invenção de forma plena. Admitia-se assim que a patente era poderoso incentivo à pesquisa e igualmente à posterior difusão universal do progresso técnico por ela trazido.

Nada mais engenhoso e prático. Só que, como veremos adiante, os abusos dela levaram a efeitos perniciosos, contraproducentes, criminosos até.

Em meados dos anos 70, o Brasil estava profundamente engajado na chamada Revisão da Convenção de Paris, em especial com o objetivo de tornar certos mecanismos da Convenção mais palatáveis aos países em desenvolvimento, sobretudo os que pudessem estimular o inventor a explorar sua patente no Brasil e desta forma contribuir de forma mais decisiva para a industrialização do país e para incentivar a pesquisa nos laboratórios nacionais.

Essas negociações, em si complexas e com óbvios impactos econômicos, foram subitamente abortadas pela entrada em cena da criação da OMC, organização que se distanciava da preocupação com o desenvolvimento econômico e, já impregnada do neoliberalismo crescente, defendia o livre-comércio, inclusive com a tentativa de convencer que o subdesenvolvimento seria por ele extirpado.

Começa assim todo um novo jogo de negociações, em que às óbvias e benéficas reduções universais de tarifas alfandegárias, sucede-se uma criatividade destrutiva dos mecanismos protetores dos países em desenvolvimento, sob a forma de novas regras do comércio internacional, em linha com os princípios do chamado Consenso de Washington, espécie de Código de Hamurabi do neoliberalismo, que mereceria análise detida, mas que infelizmente nos levaria longe demais.

O que importa frisar é que os países desenvolvidos e em especial os Estados Unidos da América começaram a apregoar que o regime de patentes, tal como inscrito na Convenção de Paris, estimulava a “pirataria", em especial no caso das patentes farmacêuticas, cuja patenteabilidade até então era facultativa, tendo em vista os interesses de saúde pública. A lei de Propriedade Industrial do Brasil até os anos 70, por exemplo, não concedia patentes farmacêuticas e nem por isso deixava de estar em conformidade com o direito internacional pertinente, regido pela Convenção de Paris.

Transpor o regime de patentes para a OMC, com toda sua alquimia neoliberal, inclusive com mecanismos de retaliação e penalidades, era o sonho dos países desenvolvidos e o pesadelo de nós outros. E a esse convite, se reagiu até o limite. Nada justificava levar para a OMC um instituto jurídico como o da propriedade industrial. Os países desenvolvidos, agora claramente assessorados por excelentes e altamente bem remunerados rábulas de empresas farmacêuticas multinacionais, produziam teorias e argumentos que, por mais ardilosos fossem, esbarravam na convicção da maioria dos países em desenvolvimento de que nada haveria a ganhar com a OMC nesta área.

Entra em campo a diplomacia canhoneira da lei de Comércio dos Estados Unidos, aplicada de forma leonina aos países recalcitrantes em aceitar a propriedade industrial na OMC e a ela aderir sem maiores delongas.

Na Prática, a lei de comércio dos Estados Unidos da América autorizou o Departamento de comércio daquele país a sancionar empresas sediadas em outros países, sempre que o país sede da empresa se recusasse a aderir ao Acordo TRIPS, onde as regras de proteção ao detentor da patente eram infinitamente mais drásticas do que as regras da Convenção de Paris.

Assim, do dia para a noite, o Departamento de Comércio dos Estados Unidos, publicava listas de empresas, geralmente de pequeno e médio porte, cujas exportações para os Estados Unidos eram suspensas e eventualmente bloqueadas ainda que essas exportações nada tivessem a ver com produtos farmacêuticos.

O gentil incentivo teve o efeito esperado. Em pouco tempo, o próprio setor industrial se tornava solidário das reclamações americanas e pressionava o governo para aderir ao tal de TRIPS, que parecia coisa de turista, visto de longe.

E desta forma, o Brasil adere ao Acordo Trips - não sem tentar heroicamente nele incluir algumas pequenas modificações – e obriga-se a alterar sua lei de Patentes, nela absorvendo toda a cicuta ao molho pardo da rígida proteção às patentes farmacêuticas e sua mais do que óbvia proteção ao monopólio dos produtos e processos farmacêuticos com os impactos negativos para a saúde pública, as contas públicas e o desenvolvimento científico e técnico do país.

E sobretudo para o seu orçamento doméstico, leitor. Principalmente, se você for, como eu, entrado na irônica “melhor idade”.

É o que pretendo expor no próximo domingo. O que você acaba de ler é apenas uma pequena fresta aberta para a escuridão.


*Embaixador aposentado