ARTIGOS
A longa jornada noite adentro do Brasil
Por ADHEMAR BAHADIAN
[email protected]
Publicado em 04/09/2022 às 09:55
A long day’s journey into night
(Eugene O’Neill)
Outro dia, um bom amigo me sugeriu escrever sobre as razões de tanta hostilidade e perplexidade no Brasil.
A proposta ficou a fazer-me caraminholas na cachola e aos poucos foi adquirindo um certo ar desafiador como a esfinge, pronta a devorar. Salvou-me a simpática “Argumento“, livraria do Leblon, uma das raras do Rio de Janeiro onde ainda se pode aproveitar o prazer de folhear novidades numa certa paz de Rio antigo e onde livros não são empilhados como bacalhau de supermercado. Frequento-a há anos e creio que igual a ela só conheci uma outra, em Nova Iorque, lá pelas ruas 80 do East Side. Não sei se ainda existe.
Mas, a “Argumento” resiste com bravura armênia às invasões bárbaras e outras pestes, graças à disciplina e dedicação de Marcus Gasparian, livreiro a driblar a Pandemia quando levava ele próprio aos domicílios dos clientes os ansiados bálsamos da boa leitura.
E foi lá na tranquilidade de uma tarde desta semana que me deparei com o livro que recomendo aos interessados em compreender esta época insensata e desafiante. Antes, registro com alegria tratar-se de obra escrita por professores universitários brasileiros e publicada por editora universitária de São Paulo. Não é pouca coisa nestes tempos em que tantos desvalorizam a cultura, a universidade e a pesquisa no país.
Sem falar no desrespeito crescente aos mais elementares direitos à vida de uma população marginalizada e ostensivamente abusada com manobra eleitoreira reminiscente do velho coronelismo de cabresto da Primeira República.
E a pergunta que não quer calar é exatamente esta. Por que chegamos a este ponto degradado de nossas relações de convivência em que escorre uma baba gosmosa de ódio em nossos gestos e palavras? Por que estamos a nos odiar tanto? Por que nossos políticos nos surpreendem a cada dia com mais e piores astúcias como se vivêssemos no condomínio de Ali Babá e seus quarenta comparsas?
O livro “De Trump a Biden” organizado pelos professores Sebastião C. Velasco e Neusa Maria Bojikian reúne contribuições de seus colegas de diferentes universidades brasileiras sobre os últimos anos da política dos Estados Unidos da América e suas repercussões no resto do mundo, inclusive no Brasil.
Mais importante, além de mostrar a fecundidade da pesquisa acadêmica no Brasil, o trabalho de Sebastião Velasco e Neusa Bojikian, sublinha a íntima e nem sempre controlável identidade de problemas e perplexidades entre o que vivemos no Brasil e as opções políticas e econômicas a nós próprios impostas, numa lambança a que se chama ora de globalização ora de neoliberalismo e, a depender da cretinice intelectual do autor, até mesmo de destino sem alternativas da modernidade, em póstuma memória a Margareth Thatcher. Ela e Ronald Reagan, o casal 20 do neoliberalismo predador.
Para mim, o livro confirma estarmos num momento-limite da civilização ocidental , em especial do capitalismo, propagado dínamo privilegiado do bem estar social e do crescimento econômico. Neste turbulento 2022 nos vemos no Brasil, mas não apenas nele, diante de um desafio a não suportar mais saídas tangenciais ou argumentações inconsistentes. Uma hora da verdade se avizinha. Uma delas, e não de pouca monta, ocorrerá neste outubro com as eleições em nosso país.
Infelizmente, a campanha eleitoral deste ano está irremediavelmente marcada pelos quase quatro anos de um governo ideologicamente fascinado com movimentos populistas e autocráticos, culturalmente regressivos e radicalmente distanciados das boas normas de civilidade democrática. Há aqui quem reverencie Viktor Orban, Erdogan e sobretudo Trump, narciso-glostora.
O governo brasileiro desde sua posse acasalou-se aos objetivos do governo de Donald Trump, inquestionavelmente comprometido com uma política raivosa de hegemonia ultrajada, revisionista de compromissos internacionais nas áreas comercial, climática e política, profundamente deletéria para um país como o Brasil, reconhecido por sua aderência ao estrito respeito ao Direito Internacional e à Carta de São Francisco, berço das Nações Unidas.
A par deste engajamento político subordinado e assimétrico, na ideologia econômica o governo brasileiro aprofundou sua “folie à deux” com o agônico neoliberalismo sem dar-se conta do ostensivo reposicionamento de arautos do conservadorismo como as instituições remanescentes de Bretton Woods. (FMI, Banco Mundial, OMS)
“De Trump a Biden” deveria ser leitura obrigatória para os interessados em política internacional e em especial na análise sobre seus impactos nas eleições no Brasil. Para os que, como eu, nascemos nos anos 40, o livro adquire o amargo sabor de uma vida cívica fraudada, tantos foram os anos de autoritarismo e de suspensão de direitos de voto.
Em capítulos independentes, mas com unicidade inegável, percorremos os anos do pós-guerra até os dias de hoje e testemunhamos como o movimento conservador buscou dividir a sociedade norte-americana em dois blocos hostis com a ajuda de redes sociais comprometidas em transformar a política em guerra, com a criação de sub-universos fechados submetidos a “narrativas” sem comprovação.
A crise financeira de 2008 e o consequente mandato de Obama com moderadas reações aos desmandos do capitalismo financeiro como, a lei Dodd-Frank, estão na raiz do radicalismo do Partido Republicano (Tea Party) contrário à regulamentação do setor financeiro, opositor ao Obamacare e, para culminar, desconfiado dos reais objetivos de Trump e sua ambivalente política em que a um prego na proteção aos desempregados se segue um gesto de sintonia com Wall Street.
Trump reabre acordos internacionais em especial o Nafta tornando-o mais permeável aos interesses americanos. Recordo, por oportuno, que se o Brasil tivesse assinado a ALCA certamente teríamos passado pelo mesmo dissabor. De qualquer forma, fomos submetidos a elevação de tarifas sobre o aço e o alumínio, apesar de todas as manifestações de imorredoura amizade de Trump por Bolsonaro e vice-versa ao cubo.
Um aspecto interessante e infelizmente ainda não suficientemente transparente é o papel de grandes grupos econômicos e de grandes associações privadas no processo de formação das decisões governamentais. “De Trump a Biden” faz referências ao assunto e menciona Soros e os irmãos Koch como financiadores de diferentes projetos como múltiplos objetivos às vezes até contraditórios. Sem dúvida é boa notícia a crescente preocupação desses megacapitalistas com o desarranjo social que assusta as sociedade de países desenvolvidos e em desenvolvimento. Trata-se, porém, de tema ainda muito comprometido com arranjos de marketing para que se possa aprofundar uma análise sobre seu impacto real na sociedade.
Para nós brasileiros, a imitação escancarada das manobras de Trump por altos funcionários em Brasília torna-se absurdamente ridícula pela miserabilidade crescente do povo brasileiro e a persistência do discurso quase delirante de que a economia brasileira se recupera sempre que fiel ao neoliberalismo e distante de “posturas socializantes ou comunistas“. No discurso oficial brasileiro o espectro do comunismo ronda nossas casas, o que parece justificar a eventual reimersão da sociedade num regime de direitos políticos cerceados e controlados, com uma imprensa fadada a publicar nas primeiras páginas dos jornais versos dos “Lusíadas”, como ocorreu na década de 1960.
O valor maior do livro é o de assinalar a importância de decisões políticas e econômicas no sentido de corrigir as abissais distâncias de renda entre pobres e super-ricos e a crescente consciência de que o eventual aprofundamento dessas distâncias, bem como a manutenção de políticas contrárias à preservação do meio-ambiente, certamente nos levarão a uma Terra cada vez mais inóspita e a um homem mais agressivo.
Estamos portanto, pelo menos assim entendo, num desses momentos cruciais de nossa história em que “o velho ainda não morreu e o novo ainda não nasceu”. O Brasil nos últimos quatro anos optou claramente por uma política regressiva muito influenciada por Trump, homem muito mais afim de Al Capone do que de Roosevelt.
A ignomínia de Trump ao ter atiçado suas milícias fanatizadas na invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021 e agora complementada com a guarda em sua residência de documentos ultra-secretos como se fossem contas de lavanderia dificilmente não será levada aos tribunais em prazo de menos de dois anos e a Democracia americana será restaurada, mas sempre ficará a nódoa do renascimento da supremacia branca e o risco cada vez maior de novo conflito armado inter-racial.
Aqui no Brasil as alternativas estão mais do que claras. Nossa politica externa terá que ser refeita em estrita obediência aos princípios inscritos em nossa Constituição. Não será trivial porém recompor nossa credibilidade com nossos parceiros internacionais, inclusive com países de fundamental importância para nossas exportações como a China, a que tratamos com a impertinência de crianças pirracentas. Nada, porém, será mais delicado do que estabelecer com os Estados Unidos da América um relacionamento mutuamente proveitoso sem a subordinação inócua que nos caracterizou no mandato de Trump nem a intervenção bisonha por ocasião da vitória de Biden em que nos permitimos deixar transparecer publicamente nossa aderência às fantasias de eleições roubadas. Tarefas de idêntica engenharia política teremos que empregar nas Nações Unidas, nos Brics, na OMS. Na OMC, será gigantesca, mas nesta área a tarefa será igualmente penosa para reequilibrar os desajustes de um comércio internacional hoje inaceitáveis para a maioria dos países.
Nas eleições brasileiras, na cabina eleitoral, diante das urnas eletrônicas você escolherá o futuro melhor para você, jovem que vota pela primeira vez. E eu também votarei pensando em você e em seus filhos. E me guiarei pela única verdade que nunca me abandonou: o Brasil é grande demais para aceitar a opção da pequenez, da ignorância, do atraso. E do autoritarismo.
Hoje já são comuns os livros tipo “por que as democracias morrem“. Espero que o Brasil não inicie a série: “por que as democracias se suicidam?”
E quem decide somos nós, eleitores. Única e exclusivamente NÓS.
xxxxx. xxxxxx xxxxx. xxxxxxx
“De Trump a Biden. Partidos, políticas, eleições e perspectivas”. 2021. Editora Unesp.
*Embaixador aposentado