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Vamos comemorar os 16 anos da Lei Maria da Penha

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Por LÍDICE LEÃO, [email protected]
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Publicado em 09/08/2022 às 10:06

A Lei Maria da Penha completa 16 anos e a reflexão a ser feita é: há motivos para comemoração? Afinal, a cada sete horas, uma mulher ainda é vítima de feminicídio no Brasil, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Mesmo com todas as campanhas de combate à violência doméstica e de esclarecimento das mulheres sobre os seus direitos, sobre o que não pode e não deve mais ser aceito, quase 2.500 vítimas foram mortas no país entre o começo de 2020 e o final de 2021. A maioria delas foi assassinada pelo marido/companheiro ou ex-marido/ex-companheiro, por motivos relacionados ao fato de ser mulher, o que caracteriza o crime de feminicídio.

É importante ressaltar que o feminicídio é o ponto final da escalada de violência sofrida pela mulher. Antes do ato fatal, há uma série de sofrimentos crescentes a que a vítima é submetida e, em grande parte das vezes, esses sofrimentos não são sequer identificados como consequências de atos violentos.

O Instituto Maria da Penha, criado em 2009 pela própria Maria da Penha, constatou em uma pesquisa feita em 2017, por exemplo, que as mulheres vítimas de violência doméstica e que estão no mercado de trabalho faltam cerca de dezoito dias por ano ao serviço, em decorrência de agressões físicas ou psicológicas sofridas dentro de casa. Muito provavelmente por causa dessas ausências e dos abalos psicológicos que acabam por reduzir a produtividade, os salários dessas mulheres costumam ser, em média, dez por cento menores que os rendimentos das profissionais que não sofrem algum tipo de violência. E, ainda, muitas dessas vítimas acabam por abandonar o trabalho fora de casa.

Esses dados servem de alerta para alguns dos sintomas que podem culminar no feminicídio. Aliás, fica aqui uma sugestão aos departamentos de recursos humanos das empresas: em vez de apenas exigir um atestado médico, uma justificativa para a falta, ou, na falta desses, descontar o dia trabalhado, por que não investir em programas ou profissionais especializadas – sim, neste caso específico seria importante que fossem profissionais mulheres – para acompanhar, assistir, acolher e orientar possíveis vítimas de violência doméstica? Afinal, o problema não é privado. Trata-se de uma questão social, que acaba por refletir nos filhos, na vida educacional das crianças, nas famílias, em todos os grupos que circundam aquela mulher.

Com a sanção da Lei Maria da Penha, a violência doméstica passou a ser definida como violação dos direitos humanos. E a partir daí, foi instituído um sistema processual autônomo para crimes previstos no Código Penal quando praticado contra mulheres. As antropólogas Guita Grin Debert e Tatiana Santos Perrone analisam que “no Brasil, a violência contra a mulher ocupou um lugar central na luta feminista, que ativamente denunciou o descaso com que a violência entre casais era tratada pelo sistema de justiça”. Por quantas décadas ouvimos repetidamente o ditado “em briga de marido e mulher não se mete a colher”, não é mesmo?

Como resultado dessa luta, a Lei Maria da Penha é destaque entre as principais conquistas de um movimento que cresce, se amplia e se intensifica a cada dia. A partir do momento em que a Lei Maria da Penha caracteriza a violência doméstica como violação dos direitos humanos, um problema que antes era individual passa a ser coletivo. Logo, o que antes era pessoal passa a ser político. Propulsiona a punição para outros tipos de violência contra a mulher, que vão além do lar, do privado, caracterizando-as também como crime. É o caso do estupro, por exemplo. A partir do momento em que, juridicamente, a mulher que sofre estupro passa a ser, de fato, considerada vítima de um crime – não importando em que local este crime ocorra – todas as mulheres passam a ter poder de denunciar, criminalmente, estas e outras formas de violência sobre o seu corpo.

A mulher passa então a ser enxergada como sujeito jurídico, político, de transformação, e não apenas como uma vítima sobre a qual podem pairar dúvidas a respeito de uma suposta “provocação” ao ato violento. É sabido que, na prática, a culpabilização da vítima ainda é recorrente, mas quando há uma tipificação jurídica, o crime está posto.

É claro que números como os citados no início deste texto mostram que apenas a legislação não garante o encerramento de casos de violência contra a mulher. Mas, sem dúvida, leis como a Maria da Penha dão poder de denúncia e proteção à mulher, contribuindo de forma definitiva para coibir os casos.

Lídice Leão é jornalista e mestre em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo. Pesquisa a subjetividade e o sofrimento entre as mulheres.

 

 

 

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