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Destino ou falência do Brasil

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Por ADHEMAR BAHADIAN
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Publicado em 07/08/2022 às 09:20

Alterado em 07/08/2022 às 09:20

As manifestações da sociedade em defesa do Estado de Direito, da soberania popular e do sistema eleitoral se multiplicam de forma contundente e digna.

Há óbvia repulsa da cidadania a manobras insinuadas e até mesmo anunciadas de quebra do ritual democrático de livre decisão do povo sobre quem governará o Brasil a partir de primeiro de janeiro de 2023, conforme anunciem, como sempre fizeram nos últimos trinta anos, as mais do que testadas e universalmente admiradas urnas eletrônicas brasileiras

Iludem-se ou tentam iludir os que veem nos sucessivos manifestos democráticos a expressão de um viés partidário. Não há nada partidário em defender o preceito constitucional maior de eleições livres em obediência ao mais sagrado ritual democrático.

A ilusão reside no quase delírio de imaginar que a população brasileira esteja disposta a trocar sua soberania e aliená-la em benefício de uma autocracia nos moldes de uma Hungria de Viktor Orban, de uma Turquia de Erdogan, de uma Venezuela de Maduro, de um escroque como Trump, de um títere como Putin.

Muito menos ainda a sociedade brasileira, por mais diversificada seja a paleta política, está a cogitar de surradas aventuras totalitárias e regressivas que estamos a ver em alguns países, mesmo na Europa ocidental, onde a extrema direita se acredita capaz de levar a bom porto qualquer navegante desses mares tempestuosos em que os riscos de conflagração militar se acentuam. A visita inoportuna da senhora Pelosi a Taiwan é apenas um exemplo a registrar e lamentar. Idem a invasão da Rússia à Ucrânia. Idem ibidem a insustentável e mal concebida campanha missionária da OTAN.

Tenho reiteradamente insistido que o Brasil talvez seja um dos poucos países em que as possibilidades de retomada de um crescimento acelerado e menos socialmente injusto são mais evidentes e mais plausíveis do que na maioria dos países em fase de readaptação à pós-pandemia e ao pós-neoliberalismo afoito, ambos em fase nitidamente terminal.

O Brasil, apesar de ter aderido ao neoliberalismo trapaceiro que muito contribuiu para os evidentes desajustes sociais até mesmo na classe média dos Estados Unidos da América, teve a prudência de não embarcar nos enfeitiçadores cantos de sereias do Consenso de Washington e à proliferação de acordos comerciais e financeiros propagados desde os anos 80 como a tábua de salvação econômica.

Resistimos a acordos hemisféricos como a ALCA, não por ideologia deste ou daquele matiz, mas devido a pesadas concessões exigidas em troca de pífias promessas de acesso a mercados, sobretudo para nossas exportações agrícolas, e as constrições descabidas na área de propriedade industrial (patentes farmacêuticas) e na obrigatoriedade de concorrências internacionais em compras governamentais (no limite, até a merenda escolar teria que ser aberta à concorrência internacional).

Esta constatação tornou-se inquestionável já nos primeiros meses do governo Trump, quando as autoridades americanas exigiram reabertura do NAFTA (Estados Unidos, México e Canadá) tornando-o mais favorável aos americanos em detrimento dos demais parceiros. Todos se lembram: apesar das juras de amor de Trump ao Brasil, nossas exportações de aço foram unilateralmente bloqueadas pelos Estados Unidos.

Não pretendo aqui recordar os embates negociadores da ALCA, mas apenas registrar que o Brasil não a rejeitou como erroneamente se diz. Na verdade, em linguagem diplomática, nós "concordamos em discordar" porque os próprios negociadores americanos reconheceram que o que pediam dos demais países não poderia ser por eles, americanos, igualmente cumprido. Ponto Final. Sem dramas.

A Pandemia contribuiu para evidenciar os erros que cometemos ao nos engajarmos em aberturas comerciais desequilibradas ou em nos unirmos a cadeias de valor de forma impensada. Hoje, a indústria brasileira tem participação de 13 por cento do PIB quando anteriormente à abertura “ao mundo moderno" chegamos a 30 por cento ou mais. Pior, não tivemos produção nacional suficiente de máscaras, filtros, luvas e respiradores. Nem oxigênio. Como diriam nossos economistas neoliberais ridiculamente pedantes: “não fizemos o dever de casa”.

Para simplificar, o que estou querendo dizer é que o neoliberalismo nos países em desenvolvimento não foi adequadamente estudado, mas tenho a impressão de que o maior mal que nos fez a cantilena neoliberal foi engavetar o desenvolvimento nacional em nome de um ajustamento a um universo comercial em muitos casos oligopolizado.

Reverenciamos contabilidades de açougueiro, sem horizontes, uma reforma fiscal a penalizar assalariados e aliviar rentistas. O investimento público se tornou anátema e há os que querem privatizar a educação fundamental e a saúde públicas.

Muito longe de nos conformarmos com a falência de nosso projeto de país, devemos agora - libertos desta “bad trip” Reagan&Tatcher - reassumir nosso destino e nossa determinação não só pelas benesses da natureza, que tanto maltratamos, mas também pelo mandamento de bem-estar social inscrito com cinzel pétreo na Carta de 1988.

Com a entrada da temporada eleitoral, caberá aos mais do que necessários debates presidenciais nos convencerem de que o voto neste ou naquele candidato, nesta ou naquela associação de partidos nos levará a um Brasil de crescimento sustentável com metas e planejamento realistas ou, ao contrário, a um impasse ainda maior do que nos encontramos.

O mínimo que se espera é o inegociável respeito à Constituição do país e a real segurança jurídica aos que aqui venham a investir, impermeável a humores de uma coligação parlamentar cujo estandarte e porta-bandeira defendam o famigerado “Mateus, primeiro os meus”.

Votar em deputados e senadores será mais sujeito a erros de avaliação, como a experiência recente nos ensina. Como dizia minha avó Julieta Chiarelli “nem sempre o bom de papo, enche o papo”.
Nosso maior flagelo não é a ameaça de um comunismo fantasmagórico, tão real quanto o lobo-mau. O que realmente nos aflige é a insensibilidade social, o preconceito racial, que sequer enfrentamos com dignidade, a devastação de nossas florestas em nome de uma suposta soberania, diariamente saqueada à mão armada.

A irracionalidade nunca foi boa conselheira. Já sabemos a que nos leva. O fato de mal ou bem termos navegado até aqui não afasta o ensurdecedor trovão das sete quedas metros à frente. O tombo seria devastador.

*Embaixador aposentado

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