ARTIGOS

Sobre fragilidade, luminosidade e irmandade

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Por MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER
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Publicado em 30/07/2022 às 11:02

Alterado em 30/07/2022 às 11:02

Eu a chamava de Anete e ela a mim, de Claire. Conhecemo-nos na PUC-Rio, no curso de Jornalismo, em 1968. Ano de chumbo, mas também de valores vividos, utopias ardentes, buscas febris e verdadeiras. Ela vinha do Colégio Santa Úrsula e eu, do Sion. Órfãs de pai ambas, tínhamos mães fortes e “rochosas” em virtude, firmeza e dedicação. A amizade nasceu entre nós e nunca mais nos deixou.

Nesse tempo ela ainda não era Ramalho, mas Abreu Monteiro. E à medida que a conhecia mais descobria sua ascendência ilustre de Capistrano de Abreu, da Madre Honorina, aliás Teresa de Jesus, primeira santa brasileira, e a inteligência e cultura como marcas da família. Anna Maria era doce e forte ao mesmo tempo. Muito feminina, vaidosa e elegante, era ao mesmo tempo capaz de enfrentar as mais fortes tempestades com coragem e determinação. Conjugava sensibilidade e racionalidade, sabia combinar inteligência privilegiada com humor invejável, que se refletia em sua escrita jornalística apurada, de estilo irônico inigualável.

Ela se formou antes de mim, pois me casei no meio do curso. Presente ao meu casamento, foi também uma das primeiras a nos receber de volta do ano passado na França, já com a primeira filha nos braços. Anna Maria também casou-se e deu à luz o filho Christiano, nascido um mês antes de minha filha caçula.

Ela acompanhou minha entrada na teologia e a trajetória acadêmica pela pós-graduação em Roma. Eu segui de perto sua carreira de jornalista brilhante: trazia saborosas notas sobre a vida social carioca, fazia análises interessantes e sempre atualizadas sobre política, cultura e acontecimentos recentes na vida do país.

Sua maior característica sempre foi a alegria com a qual seduzia as pessoas que a conheciam. Sua presença era garantia de festa, bem-estar e boas gargalhadas. Mas também de papo sério, inevitavelmente marcado por um otimismo indestrutível. Crítica mordaz, sempre sabia salvar o lado bom das coisas e iluminar os ambientes com seu refinamento e brilho.

Vibrei com ela quando Christiano, seu filho, tornou-se um chef renomado e talentoso. E quando Antônia e Olívia, suas netas, inauguraram um novo e precioso capítulo em sua história luminosa de vida. A beleza das meninas refletia-se no rosto da avó, que a devolvia multiplicada e cheia de brilho.

Eu a vi fragilizada em algumas ocasiões. Notadamente quando morreu sua mãe, dona Honorina, por quem tinha verdadeira adoração. Ou durante a enfermidade de Fernando, seu companheiro querido, falecido ainda muito jovem. No entanto, essa fragilidade vinha sempre banhada da luminosidade do amor à vida e da alegria que a tudo vencia. Nossa irmandade se construía na interlocução desses seus traços luminosos com minha, às vezes, excessiva seriedade. Com seu jeito de ser ungia e flexibilizava minhas articulações um tanto rígidas e seu humor insuperável acabava vencendo qualquer dureza.

Anna Maria tinha uma irmã mais nova a quem era muito unida. Eu era filha única e ela se tornou de certa maneira minha irmã, a amiga que meu coração escolheu e que comigo partilhou praticamente uma vida inteira. Minha mãe a amava como filha, meu marido como irmã e meus filhos a tinham em conta de tia muito amada, aberta e de escuta pronta, captando bem seus desejos vindos de outra geração.

Quando ela me contou que tinha um problema sério de saúde, acompanhei seu otimismo e acreditei com fé firme em sua recuperação. Claro. Anna Ramalho só combina com vida, e mais vida, e força e vitória. Segui de perto o tratamento, animada com sua atitude positiva e certa de sua cura.

É por isso que me encontro hoje desarvorada e sem entender nada. A piora em poucos dias, as últimas mensagens trocadas, a visita marcada em sua casa adiada e que não acontecida. Depois o silêncio. As mensagens não respondidas e as notícias cada vez piores chegando até a notícia de sua morte.

Ainda não realizei plenamente o que vai significar não poder mais ouvir sua voz alegre, suas piadas inteligentes, suas observações finas e perfeitamente coerentes. Não acredito que não vou ouvir mais meu nome na versão que ela criou – Claire – em seus áudios e chamadas telefônicas. O vazio que sinto corresponde ao tamanho da irmandade que nos unia e me fez experimentar a graça de ter uma irmã em minha unicidade filial.

Querida Anna, recuso-me a dizer adeus. Digo até já, até breve, porque sei que em cada momento, em cada esquina do que ainda me resta viver vou encontrar seu rosto alegre, seu sorriso inspirador. Vou ouvir sua voz dizendo coisas sábias e ao mesmo tempo me fazendo rir às gargalhadas. Você habita em mim e é parte intrínseca desta vida que vivemos, tão rica e fecunda. E que continuaremos a viver, pois ambas temos fé e esperança. Nosso Deus é o Deus da vida e sua última e definitiva Palavra só pode ser de vida. Vida essa que já se pode sentir nas milhares de mensagens de carinho das pessoas que foram afetadas por sua passagem e expressam o que você é: fonte de vida para tantos e tantas.

Maria Clara Bingemer é professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, autora de 'Teologia latino-americana:raízes e ramos' (Editora Vozes), entre outros livros.

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