ARTIGOS

Um elefante no caos

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Por ADHEMAR BAHADIAN
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Publicado em 24/07/2022 às 09:25

Se você está cansado e desanimado com o rumo da vida política no Brasil, saiba que também estou. A cada dia, somos desrespeitados em nossa boa-fé com uma manobra derrapante às leis em geral e frequentemente à própria Constituição. Se o impensável crescimento do número de cidadãos com posse de armas de fogo o preocupa, saiba que a mim também. Se o silêncio de nossos parlamentares diante desses dois fenômenos lhe parece incompreensível, saiba que a todos os brasileiros democratas também incomoda, assusta, irrita e talvez deprima.

Estamos a viver uma das fases mais paradoxais de nossa história. As eleições gerais em outubro, quando elegeremos um terço do Senado Federal, toda a Câmara dos Deputados, os governadores dos Estados, as câmaras estaduais e o presidente da República, será um movimento gigantesco em que 156 milhões de votantes pressionarão as teclas das urnas eletrônicas brasileiras. Deveríamos todos estarmos orgulhosos de que nosso sistema eleitoral permitirá sabermos o resultado do primeiro turno eleitoral - em alguns casos talvez o único - no mesmo dia. Que outro país no mundo, com uma população como a nossa poderá apresentar igual performance? A Índia, talvez.

Os Estados Unidos da América por duas vezes tornaram pública sua admiração pelo que consideram um sistema eleitoral de excelência, digno de ser imitado mundialmente. Idêntica admiração e confiança em nosso processo eleitoral nos vieram da França, do Reino Unido e certamente outras virão.

Ocorre que, na mesma faixa de onda de desacertos e equívocos a que estamos como povo sendo submetidos nos últimos quatro anos, desacertos, ideologias e desmandos que nos fizeram regredir econômica, política, culturalmente, enfim, civilizacionalmente, estamos confrontados com a suspicácia de que nossas urnas eletrônicas são frágeis, passíveis de fraudes e de malícia.

Aguça a curiosidade saber porque só agora depois de quase trinta anos de uso contínuo se levanta esta gravíssima acusação. Quer dizer que a eleição de Collor teria sido fraudada e o real vencedor Lula? Ou que Fernando Henrique ganhou duas vezes no primeiro turno, quando Lula teria sido o real ungido? Quer dizer que Haddad teria vencido Bolsonaro? Que tese se pretende provar? Que as urnas eletrônicas controlam nosso destino como nação?

No atropelo desta carruagem, neste curioso país em que vivemos, uma tarde dessas se poderá arguir que as transferências bancárias eletrônicas podem igualmente estarem a ser fraudadas e, de repente, ficarmos a saber serem nossos salários e pagamentos fraudulenta e erroneamente depositados em nossa conta. Seríamos intimados a restituir em moeda corrente e na boca do caixa todos nossos rendimentos nos últimos trinta anos.

Imagine se a coisa pega. Enquanto aqui dormimos, os asiáticos estão a transferir eletronicamente milhões de ordens de pagamentos por noite. Quem pode nos garantir que durante o nosso já tumultuado sono dos últimos anos, Xi Jinping não estará sugando dólares dos Estados Unidos, libras do Reino Unido, reais do Brasil? Talvez só assim se explique o vertiginoso crescimento econômico da China, coisa só mesmo da China ou do arco da velha. Talvez, o único jeito será voltarmos aos tempos do escambo e trocarmos lantejoulas por confetes, serpentinas por lança-perfume, angu por rabada.

Esta menção a lança-perfume me faz pensar que é difícil implementar uma fraude sem uma ameaça, geralmente de mão armada. E aqui volto ao exponencial aumento de cidadãos com posse e porte de arma. Bem sei que todos são apenas aficionados do tiro ao alvo, deleite que vem substituindo o ultrapassado e perigoso esporte da leitura, seja ela de ficção ou apenas científica. Há quem diga ser possível transformar-se bibliotecas em clubes de tiro. Bela ideia, sem dúvida. Quem sabe não se promovam igualmente nas escolas públicas campeonatos de tiro aos livros, o que contribuiria para erradicação de cupins e de outras mazelas.

Mas, voltemos às eleições. Não sei se devo, mas me atrevo a uma sugestão. Por que nos dias de votação não se proíbe o porte de armas com rigor, a fim de que os eleitores não se sintam tentados a fraudar uns os votos de outros? Talvez menos ameaçadas, as urnas eletrônicas se tornem mais imparciais.
E na Santa Paz voltemos a dormir tranquilos.

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Em Tempo: Já está nas livrarias “Laços de confiança“ de Celso Amorim. Leitura obrigatória por quem se interesse por política externa.

2.- No youtube merece ser visto com atenção o último segmento do inquérito sobre o “6 de janeiro” e a tentativa de Trump de levar o país ao caos. Obrigatório para democratas em geral.

*Embaixador aposentado

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