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Em busca do Brasil do Bem (7): da antropofagia à autofagia

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Por ADHEMAR BAHADIAN
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Publicado em 19/06/2022 às 11:14

Alterado em 19/06/2022 às 11:14

Esta semana do “Corpo de Cristo” há de ficar em nossa lembrança como aquela em que nos descobrimos autofágicos. O massacre de dois indigenistas nas fronteiras do Brasil nos mergulha na abissal profundidade da barbárie. De imediato nos golpeia, com a força da verdade sem meio-tons, a travessia da antropofagia à autofagia em que se vê imergida a sociedade brasileira.

O ódio disseminado nos últimos anos nos oferece a safra de nossa miséria moral. Não basta matar. A promoção cotidiana de armas de fogo, o deboche reiterado do Estado de Direito levaram à selvageria de sermos temidos por quem considerávamos primitivos e passíveis de exclusão social. Assimiláveis aos quilombolas, ridicularizados e estigmatizados pelo chefe inculto de uma nação de tantos povos, por muitos anos terra da servidão da raça negra, terra da promissão de tantos imigrantes. Deitada, ainda, em berço esplêndido.

Tínhamos a ilusão de que apenas destruíamos o meio ambiente. Derrubávamos árvores centenárias e desmatávamos florestas em expansão de uma fronteira agrícola antropofágica. Agora, vimos que não. A destruição é mais profunda, mais deletéria e fatal que a explosão de um carcinoma social metastático a arrasar quem e o que se interponha à cobiça vulpina. O narcotráfico expõe suas vísceras no território que defendemos contra a presença "inimiga” de pastores e protetores de silvícolas, temidos por estarem sentados em riquezas de nosso subsolo.

Em nome da defesa da soberania territorial, recusamos historicamente e de forma radical a cooperação internacional para transformarmos a Amazônia num exemplo universal de desenvolvimento auto-sustentado. Mas, cinicamente, estimulamos a proliferação de Serras Peladas.

"A Amazônia é nossa" dizemos enfática e pomposamente sem nos darmos conta do equívoco geográfico, pois a compartimos com países fronteiriços, e da hipocrisia histórica pois sequer a defendemos do inimigo óbvio e predador.

A política de “passar a boiada”, de decepar organizações como a Funai revela sua cara assassina no sentido literal da palavra e nos vemos diante do impasse interno e da vergonha internacional de assumirmos candidamente nossa incapacidade de dar segurança não só a índios, mas também a brancos.

O assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips, só revelado graças ao alarme soado pelos chamados índios isolados, deu à nossa civilização uma lição de humildade que nunca tivemos, enxotou nossa empáfia e tornou transparente nossa infundada soberba diante das inúmeras advertências feitas por cientistas brasileiros e estrangeiros.

Coincide infaustamente o episódio sórdido amazonense com o aprofundamento de uma política de desagregação institucional em que o Legislativo pretende alterar a Constituição para “revisar” ou anular decisões do Supremo Tribunal Federal, transformando num imenso sarapatel a separação dos Poderes e solapando a palavra final e irrecorrível do guardião da Constituição.

O Executivo, num impulso de irracionalidade, insiste em escarafunchar no sistema eleitoral brasileiro questiúnculas e possíveis arritmias, com vistas a aprofundar na população a semente da discórdia, já visivelmente embaraçosa e quase incontrolável.

A economia nacional, guiada ou teleguiada por princípios cada vez menos sólidos da boa gestão salta de um neoliberalismo fundamentalista para um intervencionismo estatal tresloucado em que se pretende transformar uma das maiores empresas de petróleo do mundo numa casa da sogra em que se explode a cozinha pela falta de sal na despensa.

A inflação real atinge dígitos crescentes e aflige sobretudo a massa popular já previamente desprovida de proteção social, desempregada e aturdida em grande parte como fruto de uma reforma trabalhista apontada cinicamente como semeadora de pequenos empresários, na realidade feroz madastra de quase-escravos.

São tantas e tão graves as derrapagens sociais, na educação de nossas crianças, na preservação da saúde de mães e filhos, na nutrição adequada de recém-nascidos que se chega a pensar que estamos diante de uma conspiração da incompetência.

Será mesmo?

De uns dias para cá, não sei o porquê, dei para me lembrar do triste papel do general Colin Powell, quando, Secretário de Estado do governo Bush, perfilado com os neo-cons Dick Cheney, Rumsfeld e John Bolton, prestou-se ao triste papel, no Conselho de Segurança das Nações Unidas, de baratear todo seu prestígio de militar honrado ao exigir apoio da comunidade internacional à invasão militar do Iraque, supostamente detentor de armas químicas.

Não há quem não saiba ter sido a invasão do Iraque o maior erro estratégico dos Estados Unidos da América, fator do muito da turbulência social naquele grande país, a ziguezaguear entre a hegemonia decadente e a secessão racial, orquestrados pelo trumpismo gatuno.

Colin Powell desapareceu do cenário político e anos depois queixou-se amargamente ter sido vilmente traído pela inteligência (espionagem, em bom português) de seu próprio governo. Não sei se neste arrependimento tardio do grande general americano terá sobrado uma pequena janela a exibir-lhe a ignomínia dele e de seus próximos ao impor ao governo brasileiro a demissão de meu colega José Mauricio Bustani, à época na direção geral da OPAQ, Organização para a Proibição de Armas Químicas.

Informado por técnicos e peritos da OPAQ de que não havia indícios de o Iraque ter armas químicas, tentou com coragem, profissionalismo e ética, que honram a diplomacia brasileira, evitar o morticínio iraquiano. Sofreu a injúria de ouvir de John Bolton a frase terrorista de que “nós sabemos onde vivem seus filhos”, à época jovens estudantes em Nova Iorque.

Perdeu o posto, comeu o pão que Bolton amassou, até ser resgatado do exílio por Lula, que o designou embaixador em Londres e posteriormente em Paris. Hoje, aposentado, retomou a carreira de pianista clássico, nos passos de sua irmã Linda Bustani.

Um dia ainda terá uma Praça no Iraque. E pelo menos um retrato na sala de aula do Instituto Rio-Branco, a academia de formação dos Diplomatas no Itamaraty. Para que dele e de sua ética se lembrem nossos futuros embaixadores.

Ainda há do que se orgulhar neste país. Mas, se depender de alguns senadores, até com isso se quer acabar. Mercadeja-se no Senado uma emenda constitucional para permitir que senadores possam ser embaixadores sem a perda do mandato. Um arranjo esperto e oportunista a, mais uma vez, embaralhar a separação dos Poderes para acomodar interesses politiqueiros, em detrimento da imagem de uma diplomacia a cada dia mais desfigurada.

Não há melhor forma para desestimular jovens a ingressar num dos mais exigentes cursos do serviço público a exigir prévia graduação em curso superior, bom domínio de pelo menos duas línguas estrangeiras, cursos de aperfeiçoamento durante pelo menos vinte anos de vida profissional - dentre os quais a defesa de tema profissional diante de banca examinadora composta por diplomatas e acadêmicos - antes de concorrer ao cargo de embaixador. A manobra dos senadores é uma carteirada na diplomacia hierarquizada e competente do Itamaraty.

De pegadinha e raspadinha, se transforma o serviço público federal numa ação entre “muy amigos” na República em que um manda e a sociedade desanda. Para trás, sempre.
Tristes, mesquinhos e venais tempos.

*Embaixador aposentado

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