ARTIGOS

A patriotada e o civismo

.

Por ADHEMAR BAHADIAN
[email protected]

Publicado em 27/03/2022 às 10:40

Alterado em 27/03/2022 às 10:40

Talvez nossos netos digam destes tempos o que nos disse Dickens: "foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos. Foi a idade da sabedoria, foi a idade da tolice. Foi a época da fé, foi a época da incredulidade. Foi a estação da luz, foi a estação das trevas". Tomara, um dia o digam. Pois, se não o disserem, nossa geração os terá deixado apenas o legado da miséria.

Trevas certamente estamos vivendo. A cada bomba que explode na Ucrânia nos assombra o pavor do autocrata vestido com o manto-mito dos deuses a disparar raios a tudo destruir num efêmero clarão. Deus miúdo em cuja alma estrebucham taras e tirania.

Putin é advertência, sinal da marca da maldade humana travestida de redenção. Saberemos entender os sinais que nos chegam da Ucrânia? Embora, reconheçamos, não só de Putins, mas de Trumps? Teremos a sensibilidade política de vermos o que germina neste solo brasileiro? Que tristes os passos da degradação a se aproximarem de nós sem que contra eles se levante o mais profundo, o mais determinado movimento de repulsa e auto-defesa.

Somos um país injusto. Retiremos definitivamente a máscara do auto-engano. Morre-se demais no Brasil. De fome. De Pandemia. De bala e de faca. De subnutrição. De ignorância generalizada.
Somos um país hipócrita. A miséria venta em nossas ruas como brisa de nossas praias. Nos acostumamos a este cenário de mendicância. Consideramos nada podermos fazer e seguimos nossos caminhos apenas temerosos de que nos encontremos diante do infortúnio, sempre à espreita. Somos animais selvagens. Hienas.

Somos país onde o impaludismo moral da escravidão nos arrancou a sensibilidade diante do outro. Somos por definição não-igualitários e fazemos da discriminação racial uma marca de nossa elegante, propalada e falsa miscigenação social.

Dia a dia subtraímos com mão de gato as poucas camadas de nossa civilidade. Nossa Constituição, mal ou bem marca de uma vitória contra o arbítrio, se apequena e se desfaz com emendas sempre fabricadas nas usinas do totalitarismo econômico, revestido do verniz da modernidade em que se pretende ignorar que jamais fomos iguais em oportunidades ditas meritocráticas.

Eleitos, nossos governantes se esmeram em fraudar a Constituição e a dela retirar os direitos humanos a que chamamos fundamentais e a nela incluir o travo da discriminação argentária. Nossos representantes nas Câmaras encontram poções mágicas a enriquecer enriquecidos e a empobrecer desvalidos. A educação pública se desvaloriza. A saúde pública agoniza. E a tudo se acha de conformidade com a ordem natural das gentes. Pobres gentes.

2022 é o ano divisor na história do Brasil. Coincidentemente o ano em que comemoramos 200 anos de uma independência política ainda sequer compreendida em suas mais do que comprometedoras limitações. E, desgraçadamente, o ano em que se baila com a fantasia do autoritarismo como forma de liberdade. E se brinca com o estranhamento que provocamos a povos e nações, antes a nos julgarem ilha do futuro.

Já perdemos muito. É visível a patriotada dos imbecis a defender um Estado totalitário como forma de vida. Nem sequer os exemplos de Putin, de Trump, de Orban, de Erdogan os arrepiam. Antes, os encantam. E se olharmos para o passado recente, veremos que pouco a pouco perdemos o pudor de sermos hipócritas e estamos a nos transformar no Estado policial de onde certamente não virá nem progresso nem harmonia. Seremos a sociedade dos neurônios perdidos.

Nos voltamos para nossas florestas com ares cúpidos de dizimadores de aves, de árvores, de rios e fontes. Somos terrivelmente depredadores e, se nos deixarem, pagaremos com antropofagia os que, nos inícios de nossos tempos, eram chamados antropófagos. Tocamos nossa boiada para rio de piranhas.
Multiplicamos em três anos a posse de armas e munições e espalhamos o pavor de que se construirá com a luta fratricida um paraíso terrestre. Nos olhamos uns aos outros com grande suspeição. Estamos em evidente crise existencial. Terminal.

Como se não bastasse a hipocrisia humana, estamos a vilipendiar os sentimentos religiosos. Repugna o uso sistemático da crença religiosa como forma de subsidiar o ódio entre nós. Estamos a ver, mundo afora aonde nos levam as "Jihads" e, mesmo assim, aqui se levantam divisões sacrílegas, apesar de nossa autêntica policromia religiosa. De cambulhada, se intromete o nome de Deus com o de Pátria, com a óbvia intenção de semear o ódio e não a concórdia. Filme antigo, estrelado por Plinio Salgado. Camisas pretas. Sucursal do nazismo. Ainda temos este ranço em muitos de nós. Não desprega da pele. Como tatuagem. Como ferro em brasa no gado.

E assim estamos porque assim votamos. Não podemos sequer argumentar que não somos partícipes desta trama. Nós a escrevemos em prosa e verso. Nós a acalentamos como canção de ninar do Dragão da maldade. Nós a aquecemos como o ovo da serpente.

E a serpente está aí a engordar. A amamentar seus filhotes sinistros, homens a nos engabelar com o cicio de suas promessas vigaristas.

Não deveria ser assim. Um programa democrático de desenvolvimento econômico nos colocaria entre as primeiras nações do mundo em no máximo três gerações. Preferimos a falsa volúpia da globalização neoliberal. Nosso parque industrial se esfarela. Nossos empresários vendem suas fábricas e vão viver em Punta del Este ou Miami. Fizemos a opção pela subserviência. Mas, atenção: não há país que sobreviva com apenas trinta por cento de sua população.

E só pode ser alvissareiro ver um economista do calibre de Andre Lara Resende nos afirmar que há alternativas para o neoliberalismo fundamentalista e a se dispor, com a participação do Cebri e da FIESP, a promover debates públicos sobre a retomada do desenvolvimento coartado pelo TINA (“There is no alternative”) da parelha Reagan-Thachter. Está no "you tube" e no site do Cebri.

Mais do que nunca a Terceira Via deve ser de programas e não de nomes. Os nomes já estão aí e, para falar sem rebuços, a única novidade é a aliança Alckmin-Lula. E assusta porque tem caráter. Espinha dorsal. Experiência de governo. Vergonha na cara.

Esta eleição é importante demais para ganhar no Grito. No Prendo e Arrebento. E muito menos neste papo furado neoguediano-frentista-iliberal-tropicalista que nos persegue desde os tempos da “Temeridade-Temer”. O país é grande demais para tanta mediocridade junta. Somos 214 milhões de sobreviventes do COVID-19, do papo furado da cloroquina, do deboche de que o presidente não é coveiro. Não somos a casa da mãe Joana. Que, pelo menos, era mãe.

2022, ano de novas eleições. A cada um a sua cegueira preferida. A todos nós, a esperança da luz. Que não nos virá dos céus, mas da consciência de nossa responsabilidade com esta terra que deixaremos a nossos filhos e netos.

Esta, a nossa hora. O tremor do inverno anunciado de nossa desesperança.

*Embaixador aposentado

Tags: