ARTIGOS
A abissal clareza da escuridão
Por ADHEMAR BAHADIAN
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Publicado em 20/02/2022 às 08:18
Alterado em 20/02/2022 às 08:18
O tormento de Petrópolis, a lama a soterrá-la em um dia de chuvas assassinas é lamentavelmente mais uma estação dolorosa nesta “via crucis” chamada Brasil. Retrato irretocável da miséria civilizacional em que se transforma este país, indiferente à sorte, à má sorte, de sua população desvalida de políticas públicas decentes, minimamente inteligentes e atentas aos reiterados avisos de uma natureza amputada, secularmente espoliada e em processo de decomposição. A destruição é física.
A odiosa política de saúde pública até hoje ainda tergiversa sobre a eficácia de vacinas, escasseia doses para nossas crianças e nos torna presas fácil de uma mortandade diária que volta a atingir índices de milhares. A eles nos acostumamos com a mesma irresponsabilidade com que encaramos as avalanches de barracos encostas abaixo, na crença mítica de um destino sobre o qual nada podemos fazer. A mortandade não é só pandêmica, é sobretudo decorrente de fraturas de caráter, de zelo público, de civismo.
A advertência sóbria, porém contundente, do presidente do Tribunal Superior Eleitoral, é ruminada como retórica política rasteira, hoje moeda corrente no cinismo dos que buscaram poder público como forma de aprofundar, senão perpetuar, o moderno escravismo mental em que vivemos. Alinhados sete crimes de responsabilidade do maior funcionário público do Brasil, eleito democraticamente para nos conduzir nos parâmetros constitucionais, apenas merecem a resposta odiosa de que tudo decorre de manobra eleitoreira para fraudar a vontade do povo.
Ainda bem que se denunciou, por quem tem competência e legitimidade para fazê-lo, clara e insofismavelmente, a marcha de uma subversão orquestrada por quem deveria ser o primeiro, por civismo e por juramento público, a responsabilizar-se pela boa condução do ritual democrático. E desanca-se a Democracia aqui, e no palco de uma estarrecida imprensa mundial, sem que a autoridade legalmente investida dos poderes de dar continuidade a denúncias e inquéritos policias e a conclusões de uma Comissão Parlamentar de Inquérito veja nelas delitos de forma ou substância. Este é um tema de essencial revisão numa correta reforma administrativa e judiciária.
Denunciou-se igualmente que se imita de forma mambembe atentados à Democracia estimulados e criminosamente incentivados por Trump, acintosamente admirado por quem o deveria repudiar, mas a ele se associa em métodos impensáveis e inimagináveis na mais tíbia das democracias. À revelia da sociedade, o Brasil se junta a uma aventura de extrema-direita capitaneada por escroques com Steve Bannon, condenado pela justiça americana e anistiado por decisão unilateral de Trump.
O Brasil segue de forma continuada e cínica o maligno receituário da destruição dos valores democráticos assinalados em abundância por obras de cientistas políticos inatacáveis nos Estados Unidos da América, na Europa e em nosso próprio país. O trabalho universitário de natureza acadêmica ou técnica sofre cortes orçamentários em benefício de orçamentos secretos e da perpetuação de um regime despudorado de apoio a comparsas e compadres em clara deturpação ao livre jogo da vida política. Temos um teto de vidro Ray-Ban.
O presidente da República parece não compreender o desacato à nação brasileira ao chamar de “irmão" um dos maiores autocratas a quem visita numa estapafúrdia viagem oficial. Declarar, como declarou, que pretende impor ao brasileiro o mesmo tratamento dado pelo governante magiar a seu povo, surpreende pela insensatez e pela leviandade, sobretudo porque o que se fez na Hungria fere de morte a Constituição brasileira. E esse comportamento, a configurar crime de responsabilidade, feito diante da comunidade internacional, que o grava em som e imagem, nos envergonha definitivamente como povo. Atesta publicamente nosso colonialismo mental atávico.
As mal-escondidas insinuações de que se buscam assistência e apoio de uma superpotência, acusada pelo FBI e pela CIA, órgãos de segurança dos Estados Unidos da América, de interveniência cibernética no processo eleitoral, tornam realidade anunciada o possível ataque anárquico às eleições de outubro e abrem uma janela de temor legítimo na população brasileira, já combalida por mais de três anos de um rosário de provações evitáveis pela inteligência e pelo simples bom-senso.
Triste país. Triste semana que ainda nos leva a figura de educador e homem público honrado da dimensão de Cândido Mendes de Almeida. E enluta igualmente nossa cultura com a morte de Arnaldo Jabor, homem de minha geração e estimulante colega no CPOR dos anos 60. Tristes Tempos.
Convenço-me cada vez mais que apenas uma vitória acachapante no primeiro turno nos levará a um Brasil melhor. Não se trata mais de opção política apenas, trata-se de civismo organizado. Única e legítima forma de contornar o bote de serpente peçonhenta com que se pretende jugular nossa liberdade de viver e sobretudo de pensar. E nos arrastar a todos a uma regressão civilizacional de cunho totalitário, nos moldes de uma ideologia neo-fascistóide, racista, economicamente escravocrata, socialmente dilapidadora, ambientalmente predadora e excelsamente beócia.
*Embaixador aposentado