ARTIGOS
Uma bica para a favela Brasil
Por ADHEMAR BAHADIAN
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Publicado em 13/02/2022 às 08:27
Alterado em 13/02/2022 às 08:27
A pensão da Otília era famosa pela Rabada com agrião às quartas-feiras. Melhor que a Rabada era o ambiente. Um sobrado bem arejado na Praça XV, com vista para as barcas. Melhor que o ambiente era Otília, uma mulata sorridente, casada com o Joaquim que comandava as panelas e era responsável pela Rabada que chamávamos "da Otília”, em óbvio desrespeito aos direitos do autor. Mas, uma coisa é você elogiar a Rabada da Otília, outra, muito diferente, seria enaltecer a Rabada do Joaquim. Assim é a vida e continuará assim sendo enquanto houver Rabadas e enquanto houver Otílias.
Às quartas-feiras, com canícula ou chuva de canivetes, uma clientela fiel subia os degraus de madeira da pensão e se sentava sempre às mesmas mesas, todas cobertas de toalhas de linho branco, guardanapos enfiados como arranjo nos copos de vidro e um pequeno vaso de flores com uma rosa vermelha sempre fresca, que Otília recebia de admirador platônico do Mercado das flores. Além da Rabada, havia a cerveja geladinha e de sobremesa um inesquecível Romeu e Julieta.
Tudo isso acabou. Hoje, já não há pensão e não há sequer Otília, de quem Pedrinho Bom-Senso extraía uma reprimenda farsesca ao chamá-la de otite, apenas para ver-lhe uma segunda vez o sorriso aberto de mulher bem-amada.
Ficamos, eu e Pedrinho. As quartas-feiras passaram ser sextas e a Rabada, embora não tenha o sabor de nossa juventude, ainda muito nos apraz. A cerveja está mais aguada, mais metida à besta e perdeu aquele sabor inefável da Faixa Azul. O endereço é outro e apenas digo que fica no Flamengo, ou melhor, no Catete, próximo do Palácio Presidencial.
Pedrinho foi o primeiro a puxar o assunto inevitável.
“Você lembra da multidão”?. “Você lembra das lágrimas de teu pai? E da alegria mal-disfarçada, falsamente compungida das viúvas do Lacerda?
A gente teria 14 ou 15 anos e até hoje reconhecemos que o suicídio do Getúlio foi um estupro político. Saímos da ingenuidade para a brutalidade da política brasileira. Li a carta do Getúlio umas 50 vezes. Li-a em voz alta até para meu Labrador, calado, a língua de fora, um olhar triste de quem pressentia que boa coisa eu não falava. Foi também a primeira vez que corri trêmulo para o dicionário no afã de descobrir o que seria “à sanha”; à sanha dos meus inimigos…
Os inimigos se escafederam. A procissão que levou o corpo de Getúlio até o aeroporto Santos Dumont tomou as ruas do Flamengo e, imensa como exército em retirada, se movia em silêncio entrecortado por soluços e desmaios. De longe, até hoje, o maior e mais profundo impacto político em nossas vidas. E a carta de Getúlio, a mais esclarecedora enciclopédia de História do Brasil.
Poucos anos depois, nos surgiu a valsa fascinante de JK. Um Brasil a trabalhar com um sonho de futuro, a plantar no Centro do Brasil um novo mundo, uma arquitetura arisca de Niemeyer a fazer de colunas e abóbadas um balé de cimento suave e curvilíneo. Para espanto do mundo.
Melhor que Brasilia era o sentimento de ser brasileiro, indiferente à oposição sempre derrotista a nos torpedear com uma eloquência funérea, embora retoricamente brilhante, de que se deveria impedir a eleição de JK e a convocar o medo do futuro revestido de uma ameaça de aniquilamento da nacionalidade por supostas forças anti-cristãs, anti-humanas e sobretudo raivosas de nosso progresso.
Abstraindo os erros e tramoias de nosso período colonial, nossa Independência paga, não com o sangue da espada branca, mas com o suor do braço negro escravo; nossa República iniciada por uma quartelada, minha estória de vivente e brasilino, se inicia a partir de JK, quando se abriram meus olhos para a dilaceração da sociedade brasileira, hoje talvez nos estertores de seu impasse.
Porque em impasse estamos. Sempre o mesmo. Mas, agora exposto de forma irretocável pela Pandemia e por um governo distônico, de uma cultura política embebida em ideologias do passado, cego à dimensão histórica e planetária deste país.
JK compreendeu com genialidade política que nosso destino seria e continua a ser o da grandeza compatível com o nosso espaço territorial, com a riqueza de nosso solo e mar e com a criatividade inquestionável de nosso povo.
Curiosamente, repetem-se hoje contra os ideais do progresso os mesmos argumentos reacionários que se levantaram contra JK. Naquela época se dizia que a eleição de JK seria a volta da anarquia, por alusão a Getúlio e às reformas do Estado por ele implementadas. Hoje se argumenta com a mesma pobreza de espírito, retórica tatibitate, mas com ódio maior, que o abandono de uma política econômica falida e sanguinária, acompanhada de um desnível social inimaginável, seria contrário aos interesses nacionais e ao sentimento do mundo. E se procura expurgar, antes de nascida, por contrariar a política raivosa a jogar com sentimentos profundos de separatismo social, racial e até territorial, uma eventual chapa Lula-Alckmin, ao invés de nela reconhecer um traço subjacente aos projetos de social-democracia, comuns, ao longo de anos, entre o PSDB e o PT. A política desenvolvida por José Serra como ministro da Saúde em favor dos medicamentos genéricos é apenas um pequeno exemplo do que aqui recordo e defendo.
E é forçoso reconhecer que se está a requentar o mesmo medo que, em 1964, fez sair às ruas em “marcha com Deus pela família e pela liberdade”, uma classe média assustada com um comunismo propagandeado para melhor agasalhar o engano de um desenvolvimento coartado e uma dependência consentida. Minha avó, lacerdista, entregou sua aliança de ouro para a salvação da família brasileira.
E hoje, forçoso reconhecer, nos transformamos num país de grandes espaços agrícolas a “alimentar o mundo”, sem nos tocarmos que a fome se espraia às nossas portas, transforma nossas cidades em campos de concentração de crianças esquálidas sem escolas, sem pão, cursando o jardim das milícias ou as faculdades do crime. Este crime não se fez sem nossa contribuição, sem nosso voto e nosso veto. E sobre nós recai culpa e responsabilidade.
Hoje, também, em plena campanha eleitoral em que se pode antever as mesmas ladainhas contra o “comunismo" se procura aliciar o apoio histórico de um povo incauto para um novo totalitarismo mais raivoso, mais despreparado do que antes. E a exemplo dos políticos demagogos que tão bem conhecemos no Rio dos anos 50, o governo atual, depois de fracassos reiterados e deboches sistemáticos sobre justiça social, vacinação de adultos e criminosa tergiversação na vacinação de crianças, promete aumentos que não pode honrar, benesses que não pode sustentar, no velho estilo de abrir uma bica na favela, que logo não mais terá água a jorrar.
Só que agora sabemos como este filme acaba. Com bangue-bangue em nossa porta de casa. Será que seremos inelutavelmente passivos e deixaremos de herança a nossos filhos e netos este inferno tropical? E atenção, passageiros da primeira classe, Miami é pequena demais para acolher o grandioso "um porcento" brasileiro.
Nossa última chance é uma vitória acachapante. No primeiro turno, sim senhor. E, por favor, não invoquemos em vão, o nome de Deus. Não depreciemos a família por suas diversas formas de amar. E a Pátria, por favor, que seja definitivamente nossa.
*Embaixador aposentado