ARTIGOS

Os traços e as traças

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Por ADHEMAR BAHADIAN
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Publicado em 23/01/2022 às 08:39

Alterado em 23/01/2022 às 08:39

Esta semana tive a insensata ideia de arrumar minha biblioteca. Não é a primeira vez e certamente não será a última. Na minha casa, porém, a simples menção de que pretendo me dedicar a por em ordem o labirinto de meus livros provoca reações, sutis umas, ostensivas outras; todas, de aberta hostilidade.

Minha mulher, com quem estou casado há quase sessenta anos e que goza de universal conceito de ser sempre gentil, simpática e tolerante parece pressentir no ar, antes que me manifeste verbalmente, minha inclinação para lançar-me na aventura e simplesmente me admoesta sibilina. “Hoje não”! É um hoje que tem o mesmo significado daquelas antigas tabuletas de bares e armarinhos. “Fiado só amanhã”.

E a reação dos demais familiares se espraia contundente. Desconfio até que nosso mais recente familiar, que atende pelo nome de “Mingau”, já percebe a concentração elétrica de nuvens negras a assombrar o lar e entra em obsessiva e angustiada reação de tentar morder o próprio rabo até se jogar exausto no tapete da sala. Tivemos uma faxineira que pediu as contas e outra que se dizia alérgica e se trancava na cozinha até o final do expediente.

Devo esclarecer que não sou um bibliófilo nem minha “biblioteca" merece este honroso título. O que tenho são estantes espalhadas literalmente por todos os espaços e ranhuras dos quartos e salas. Excluída a bela estante de madeira nobre feita sob medida na sala de estar, as demais variam em cores e materiais diversos. O que tenho na realidade é uma quantidade avantajada de livros que me acompanham desde a adolescência, quando, sem querer, me viciei no prazer quase diário de visitar livrarias e delas sair sempre com três ou quatro livros.

Nunca tive nenhuma atração por jogos - até hoje sou incapaz de ser parceiro num familiar biriba - não gosto de corridas de cavalos e jamais lavei um carro, à exceção de meu primeiro fusca azul em nossa primeira semana de convivência. E olhe lá.

Com os livros, tudo muda. Gosto do cheiro. Implico ou me deleito com suas capas e os guardo sempre e sempre tenho enorme dificuldade para emprestá-los.

Não sei se disse que nunca leio apenas um livro de cada vez. Convenci-me desde os tempos escolares de que, se somos capazes de estudar quatro ou mais matérias por semestre, por que raios não seremos capazes de ler dois ou seis livros ao mesmo tempo? E é assim que leio. Não tenho livro de cabeceira.

Tenho livros no parapeito das janelas. Na mesa de jantar. No banquinho do banheiro. Em cima da televisão. Sei que isso provoca a ira de minha consorte e me tem levado a algumas surpresas de ver desaparecer livros em “fase de leitura” como também se diz em fase de repouso ou em fase de gestação.

Instalou-se, portanto, em minha casa um secreto jogo familiar em que eu espalho livros pela casa e minha mulher e severas faxineiras se especializam em transpor para estantes (qual delas?) livros que às vezes levo dias para notar o desaparecimento. Tudo isso se passa de forma muito civilizada, quase como um jogo de críquete que, me dizem, podem durar dias sem terminar.

E eis a verdade. Não vou arrumar livros nas estantes. Vou atrás deles pois certamente foram enfiados sem cerimônias em lugares insuspeitos.

Esta segunda-feira passada, dei início a este safari literário estranhamente enriquecedor. Comecei pela sala de jantar, na estante de madeira de lei, de uns três metros de altura, com uma escada estilo armazém antigo a correr num eixo de alumínio em toda sua extensão. No seu quarto degrau me sinto um pouco temeroso, principalmente depois de que, faz alguns anos, tive uma crise de labirintite para tonteira nenhuma botar defeito. Tomo a precaução de me amarrar na escada com um cinturão semelhante a que os limpadores de janelas usam em suas atividades. É, sem dúvida, um toque ridículo que imprimo a meus afazeres e que muito me desmerece no universo familiar. Mas, enfim, o seguro como se sabe,…

Descobri que não há desconforto em folhear um livro pendurado na escada, como se fosse um pirata na gávea de seu navio fantasma. Estico a mão e me surge magicamente o passado em letras impressas e impressionantes. Um deleite pela surpresa, cada vez mais frequente, de constatar que o lido deve ser relido e a cada leitura perceber o que antes fora mal-percebido ou totalmente despercebido.

Ontem, por exemplo, me saltou aos olhos a primeira edição do “Formação Econômica do Brasil“ de Celso Furtado, livro que transformou minha vida num "antes" e num "depois”. Li-o, até hoje me recordo, com a curiosidade e a avidez de quem penetra pelo mundo encantado dos livros seminais de Monteiro Lobato, etapa preliminar de quem ascende no tapete mágico de descobertas sucessivas, abertas pelos textos de Caio Prado Junior, Érico Veríssimo e seu inesquecível “O Tempo e o Vento”, João Ubaldo Ribeiro e seu "Viva o povo Brasileiro”.

Celso Furtado me mostrou quão ficcional era a história do Brasil ensinada na escola, pontuada de datas despidas de significados, de capitanias hereditárias conhecidas apenas por seus limites geográficos e os nomes de seus titulares sem menção ao impacto delas na formação social do Brasil.

Vivíamos um Brasil de Pero Vaz de Caminha, de um Eldorado descoberto no outro lado dos mares, onde em se plantando tudo nasceria. Um Brasil idílico, fantasioso, estirado sob o Cruzeiro do Sul.

Para a geração nascida nos anos 40, este Brasil se derreteria nos anos 60 com as tensões sociais internas e as pressões ideológicas trazidas por uma espúria associação entre canibalismos interno e externo que floresceu aqui e mundo afora com os envelopes adocicados de Globalização, Consenso de Washington e sobretudo livre-trânsito financeiro.

E de seus efeitos nefastos fomos muito bem advertidos. Estão em nossas estantes os livros de economistas como Belluzzo aqui e Stiglitz no exterior que nos alertaram para o canto de sereia embutido nas farsas de teorias econômicas de última geração

Em 2022, o Brasil se descobre um país de 1920. Fornecedor de produtos primários, com sua indústria destruída, sua população desesperançada. Nós que já fomos a sexta economia do mundo, despencamos ladeira abaixo e uma ideologia do quanto pior melhor se instalou no Brasil com a desfaçatez de se julgar salvadora.

Não mais. Há sinais a cada dia mais evidentes de que a sociedade brasileira finalmente compreende que repousa em sua mãos a decisão cívica de mudar seu destino.

E este será o tema desta página que se abre como um espaço para o civismo criativo, num diálogo - espero de mão dupla - entre mim e você, que me honra e encoraja com sua leitura sempre dominical.

Precisamos muito conversar.

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*Embaixador aposentado

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