ARTIGOS

Breves notas sobre o ventilador

.

Por ADHEMAR BAHADIAN
[email protected]

Publicado em 16/01/2022 às 08:39

Alterado em 16/01/2022 às 08:39

O presidente Macron excomungou os negacionistas das vacinas e prometeu" merdar-lhes" a vida. A frase provocou pruridos em ouvidos delicados neste país, embora aqui o presidente chame de" tarados" os defensores das vacinas para filhos e netos e, para culminar, insinua de forma malévola, indigna de um militar honrado, ter a Anvisa interesses subalternos ao recomendar a aplicação de vacinas.

Como reles e repulsivo Torquemada, ameaça publicar os nomes dos funcionários “responsáveis" pela aprovação das vacinas para que o povo tome as providências cabíveis. Herodes não faria melhor. Para quem não se lembra: Herodes mandou decapitar todos os bebês na Judeia cuja idade coincidisse com o a de Jesus Cristo. Foi uma tentativa de abortar o Cristianismo. Uma das muitas.

Este, o Brasil em que vivemos. O presidente sugere o linchamento público e joga no ventilador tudo o que de mais fétido se produza em nossa sociedade, hoje devastada.

O presidente Macron mandou um recado sutil para o nosso negativista das vacinas, que talvez não o tenha entendido por ser homem grosseiro e vulgar em sua linguagem e percepções.

Ao prestar a Lula honras de chefe de Estado no Palácio Presidencial em Paris, Macron reconheceu em Lula o Estadista sobrevivente.

Ao descer os quatro ou cinco degraus para o receber à porta do carro, Macron sinalizou que, além de um Estadista, recebia um cavalheiro. Um chefe de Estado que jamais teria a deselegância de fazer comentários de delinquente à esposa de um presidente.

Lula nasceu pobre, não cursou academias militares mas é genialmente dotado do sentimento básico de um líder: a empatia. Coisa que ultrapassa o entendimento de negacionistas a fazer da política uma mesóclise da cupidez, da arrogância e da mais deslavada mentira.

Vejam Trump. Este "outdoor" do narcisismo, a utilizar a massa humana como espelho para alimentar sua vaidade patológica e sua infinita capacidade de mentir de forma hipócrita e assassina. Cidadão-pária, responsável por incitar uma turba a invadir o Congresso americano, ameaçar de morte seu próprio vice-presidente, companheiro leal de partido e de governo, numa manobra a recordar Adolf Hitler e a noite dos longos punhais.

Nada mais totalitário do que o projeto do “Make America Great Again” (MAGA) a se desenrolar nos Estados Unidos da America como a maior regressão civilizacional deste século 21. Com o MAGA, Trump criou uma tribo supremacista, um racha tectônico no tecido social americano de consequências ainda não totalmente avaliadas.

A reação de Biden em seu discurso no passado 6 de janeiro, por mais eloquente tenha sido, não parece ter reduzido o processo de regressão civilizacional iniciado por Trump. Nosso presidente sempre apoiou a degenerada política de Trump e sua campanha eleitoral recebeu assistência técnica de Steve Bannon, arquiteto de uma aliança radical de extrema direita para a qual Eduardo Bolsonaro foi designado representante na América do Sul. Isso faz do Brasil um país identificado com a Hungria, Turquia, Polônia e Rússia. E nos transformou em pária internacional. E só não entramos numa aventura militar contra a Venezuela - ninguém me tira isto da cabeça - graças ao bom senso do vice-presidente Mourão. Nosso desatinado Chanceler de então fez papel de bobalhão.

Como no nazismo de Hitler, o MAGA de Trump elegeu a diversidade de costumes responsável pela decadência do progresso do país. Substituiu o anti-semitismo em cruzada contra o Negro, contra o imigrante e contra a orientação sexual supostamente desviante, Trump faz da intolerância a moeda de troca das relações humanas e pretende, a exemplo de Hitler, construir a raça pura deste milênio. Trata-se de um narcisista com a inteligência de um protozoário.

Trump, repito, nada mais é do que um “outdoor“ uma marionete cujas cordas são manipuladas pelos oportunistas de sempre, os que nos acusam de extremistas, de esquerdopatas, de engenheiros do caos e - nunca é bom esquecer- de comunistas.

Mas nem Trump ousou mentir ou ludibriar o povo com as vacinas. Ao contrário, Trump estimulou a vacinação do povo americano e com isto terá salvado milhares de vidas. A pergunta que fica no ar é a de especular porque o presidente do Brasil, confesso admirador de Trump, não o seguiu nesta que foi uma de suas raras grandezas. Talvez para Bolsonaro a vacina tenha um elemento qualquer ideológico. Afinal, Bolsonaro foi radicalmente contra a vacina produzida na China e andou dizendo que a vacina pode transformar alguém em jacaré. Ou pior, transformar alguém em esquerdista ou comunista. Muita gente acredita no que diz Bolsonaro, que usa e abusa da fronteira entre o real e o onírico.

Transpor a dúvida sobe a eficácia das vacinas para pais e mães que esperam da palavra do chefe da Nação a sinceridade engajada com o bem-estar da sociedade - tal como reza a Constituição a que jurou respeitar e cumprir -, tangencia o crime de responsabilidade. Ou será que Conge vê aí uma exclusão de ilicitude?

Permitam-me que me apresente: sou vacinado e sou de esquerda. E o que é ser de esquerda neste século de sombrias maquinações? Como diz Norberto Bobbio, ser de esquerda é ser a favor da igualdade e do progresso, ser contra a desigualdade social. Esta, a essência do homem de esquerda, assim como a essência do homem de direita é a defesa do privilégio, do monopólio e da indiferença diante da desigualdade social. A Direita defende que o Estado financie pesquisas sobre medicamentos e vacinas, que as empresas financiadas patenteiem suas descobertas e monopolizem a saúde pública. Desta forma, sempre o número de vacinados é aquém da velocidade transformadora do vírus e outras cepas vão surgindo para o cofrinho Propriedade Intelectual. O capitalismo selvagem é o vetor oculto da Pandemia.

Ser de esquerda incomoda. O olhar da esquerda é sempre demandante, principalmente quando os desníveis sociais atingem patamares condenáveis não só pelos direitos fundamentais dos homens mas também intoleráveis até mesmo pela sociedade protetora das hienas. Nos dias que correm, homens e crianças deste país se transformam literalmente em vira-latas de lixo em busca de uma sobrevivência diariamente negociada com a violência, com a milícia e com a morte.

Nos últimos quarenta anos, as marionetes Reagan e Thatcher deram inicio ao culto do mercado onisciente. Hoje, a minoria milhardária considera estupro civilizatório a luta pela sociedade do bem-estar social. E nesse impasse estamos, aqui e alhures.

Hoje ser de direita é defender a continuidade desta política que nos levou a quase 650 mil mortes pelo descaso com as vacinas; a mais de 14 milhões de desempregados ou marginalizados. De acordo com as últimas pesquisas, os amantes da Direita atingem um quarto do eleitorado brasileiro. É pouco, mas enorme.

Que terá acontecido a nos fazer votar no atraso em que mergulhamos há quase quatro anos, mas que parece quatro séculos? Nós que saímos às ruas na marcha dos 100 mil, que lutamos pelas Diretas Já, que dançamos e cantamos com as músicas de Chico, Gil e Caetano? Nós que nos amávamos tanto, como nos retratou Ettore Scola no lindíssimo e amaríssimo “C'eravamo tanto amati” (1974) onde conhecemos os limites humanos da amizade e do amor. Que fizemos a nós mesmos para votar com tanta incúria a quem nos acena com a destruição e a morte?

E quem poderá ainda nele voltar a votar, como se a cabine eleitoral fosse uma câmera em que se liberassem nossas irracionais pulsões de morte?

Será que no bicentenário de nossa Independência vamos reafirmar nossa eterna dependência e subalternidade?

Não temos mais direito à ingenuidade. Que fiquem com as bravatas os seguidores de mitos e de charlatães. Saímos de 2021 como quem sai de um esgoto, nos esgueiramos de um lodaçal sabedores de que ainda temos um pântano diante de nós. 2022 será uma ano de provações, de incitações a violência como única maneira de tentar justificar o continuísmo do trumpismo na sociedade brasileira. Aceitar as provocações será fazer o jogo da plutocracia descarada.

Feito o balanço desses três anos, impossível não constatar ter sido a Constituição brasileira deturpada em seu texto e em seu espírito.

A administração pública perde seu caráter não-discriminatório e busca lealdades pela submissão acrítica. A economia brasileira se fungiu numa montanha de ilusionismo, oportunismo, cupidez e puro oportunismo de odor escravocrata.

Ensinamentos da mais escorreita racionalidade no combate à Pandemia são substituídos por crendices e a população estimulada a correr riscos fatais.

Nunca o apoio governamental à educação, à saúde, à pesquisa e à cultura foi tão desleixado, antagônico ao sentimento popular. A imprensa objeto de suspeitas infundadas ameaçada por uma grande indústria de verdades paralelas e mesquinhas mentiras, quando não de manobras totalitárias de assassinatos de reputações.

As eleições de 2022 adquirem um indisfarçável sentido de defesa cívica contra a instalação de um regime totalitário, nos moldes ambicionados por trompistas

Não nos enganemos, a vacina maior este outono será contra o ilusionismo político, o carreirismo deslavado e a ressurreição dos porões da violência política.

*Embaixador aposentado

Tags: