ARTIGOS

Dostoiévski: 'A Dócil' e as realidades do século 21

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Por RICARDO A. FERNANDES, [email protected]

Publicado em 26/11/2021 às 18:18

Alterado em 26/11/2021 às 18:22

Na nota do autor de “A Dócil” (Ed. 34, Tradução de Vadim Nikitin, 2003), Dostoiévski descreve a novela como “fantástica”, ainda que a considere “realista ao extremo”. O fantástico, segundo ele, diz respeito à própria forma narrativa, em que ora o personagem fala sozinho, ora conversa com um interlocutor invisível ao tentar entender o recente suicídio da mulher (sem spoiler, já que no primeiro parágrafo o ocorrido se apresenta ao leitor).

As contradições se avolumam à medida que a novela avança. Tomado pela surpresa da morte repentina, os pensamentos se atropelam, se fundem e levam o protagonista a conclusões, tecidas por uma lógica questionável, muitas vezes distantes da realidade dos fatos. A realidade extrema a que se refere Dostoiévski é a realidade do pensamento fantasioso.

Me lembrei dessa novela, publicada em 1877, ao observar um sujeito olhando para a tela do seu aparelho celular. Foi terça-feira, final de tarde, quando vi um homem de seus 30 e poucos anos absorvido pelo que concluí ser um diálogo interno. Ele olhava para a tela e sorria, ensimesmado. Afastava e aproximava os olhos do aparelho, como se brincasse de ver seu reflexo distorcido num espelho de superfície irregular. Eram movimentos discretos, por esse motivo os demais pedestres não o estranhavam. Ou talvez não estranhassem porque fazem o mesmo.

O tempo tinha virado, batia um vento quase frio neste estranho final de primavera. O tal homem encolheu os ombros mas a brisa não foi suficiente para removê-lo do prazeroso diálogo consigo próprio. Riria do que, o feliz caminhante? Talvez, encantado por uma foto de 5 anos atrás, se recordasse cercado de amigos, todos felizes, abraçados. Acima da suposta foto, a legenda do Google diria algo como “bons momentos” seguida da frase “Há 5 anos”. Quem nunca?

Na hipótese de que o tal sujeito visse uma cena com amigos – mas poderia ser a recordação de uma viagem, um passeio com a iguana de estimação ou um belo prato de feijoada – seriam os demais integrantes da foto realmente tão legais? Ou o que mais importa é a imagem para, a partir daí, ele – ou cada um de nós – criar sua própria realidade? No livro de Dostoiévski, o recém-viúvo cria diálogo com ouvintes imaginários. Infelizmente, para o personagem, a realidade não muda: sua esposa está morta.

Para nós, esquizofrênicos súditos dos algoritmos, a realidade tangível é também imutável, embora os empresários do Vale do Silício queiram que pensemos o contrário. Para eles, a única realidade que importa é sua polpuda conta bancária num paraíso fiscal. Mas o mundo está aí: pessoas matam, morrem, passam fome, perdem o emprego, filhos repetem de ano, vizinhos torram nossa paciência. Tem muita coisa ruim acontecendo. Apenas fingimos que não é com a gente. Nós e o simpático e sorridente caminhante.

A culpa também é nossa. Nos deixamos viciar por esse infernal aparelhinho que, dotado de uma tela e vários aplicativos, grudou feito chiclete no interior de nossa caixa craniana. E por quê?
Dias atrás conversava com uma amiga psicanalista. Uma das hipóteses colocada por ela é que, se qualquer conversa presencial ou por telefone envolve um empenho de energia psíquica, – empenho esse necessário, inclusive, para o fortalecimento de vínculos afetivos – ao evitarmos o diálogo poupamos nossa mente de nos resolver com o outro, num tempo comum.

Guardamos o tempo para nós, cada um senhor do seu relógio. Não nos submetemos ao tempo do outro. Essa é, talvez, a realidade atual. Uma realidade moldada por bilhões de fantasias, cada ser humano com a sua. Mas se o tempo de cada um é diferente, ainda vivemos no mesmo planeta.

No livro, o atropelo de pensamentos leva o protagonista a conclusões precipitadas, desconectadas do mundo onde vive. Hoje, mais de um século depois, com tantos senhores do tempo, tão absorvidos por suas fantásticas realidades, como achar soluções possíveis e conectadas com o único espaço que temos? Vida dócil!

Publicitário, escritor e membro da União Brasileira de Escritores-SP.

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