ARTIGOS

Luto, culpabilidade e expiação

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Por ADHEMAR BAHADIAN
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Publicado em 24/10/2021 às 08:20

O luto não é um momento. Freud o descreve como um processo cujo primeiro estágio é a negação, seguida da revolta. Não sei se as categorias de Freud, pensadas sobre o sofrimento individual, podem ser transferidas para a psicologia social. Sei apenas que o Brasil está em luto. À beira da revolta. Muito longe da aceitação, fase final do processo.

Se não houvesse outros - e os há em abundância - os fatos revelados sobre a incúria governamental, sobre a desfaçatez de alguns de seus agentes, a frieza e crueldade de altos funcionários comprometidos com a Constituição por juramento expuseram as vísceras de um corpo social em fase acelerada de putrefação. O Brasil hoje é um Estado em decomposição.

Na tarde em que parentes de vítimas da peste contaram a senadores a dor por que passaram com a perda de seus pais, com a dilacerante angústia de enterrar seus filhos em meio o caos sanitário de um Brasil dominado pela violência estupradora da negação da ciência médica, finalmente baixou em nós a dimensão da monstruosidade de que somos todos vítimas e potenciais cúmplices.

Tornou-se impossível não reconhecer a devastação da morte, negá-la ou sublimá-la com velhos mecanismos de defesa e não sentir subir o sangue à face com o horror de nos constatarmos irremediavelmente traídos por um governo despido do mais elementar sentido de solidariedade diante do sofrimento e mortandade da população brasileira.

E tornou-se difícil, senão impossível, acreditar que as providências governamentais tivessem qualquer objetivo socialmente construtivo e passamos a vê-las na exata dimensão de sua cumplicidade com a conquista e permanência no poder a qualquer custo, mediante as mais sórdidas alquimias desde que a rapina das riquezas do país e de seu povo pudessem ser gradual e permanentemente extorquidas, calcinadas.

E o tão esperado bicentenário da Independência nada mais seria do que a festança da espoliação e do escravismo pois ,muito longe de termos um governo honrado, encalhara em Brasilia a nau capitânea dos piratas por vocação e mimetismo.

Algo de muito perverso se passa nas almas dos que nos pretendem governar com leis a depender sempre da eliminação castradora de um direito constitucional. Seja o direito ao trabalho justamente remunerado. Seja a previdência dos que cumpriram suas obrigações laborais seja em reformas fiscais em que o ônus direto ou indireto sempre recai sobre o assalariado e jamais sobre o rentista.

Triste país a confundir na mesma rapina o direito de propriedade com abuso do monopólio e permitir em nome do progresso da ciência a concessão de direitos extorsivos a mega-empresas alienígenas enquanto ao mesmo tempo pune a pesquisa nacional, desidrata o orçamento de ciência e tecnologia, destrói como cupins as salas de aulas de nossas escolas e proclama na praça do povo ser a escola superior instrumento do privilégio, sem ao menos tentar corrigi-lo.

Triste governo a empoderar o legislativo ladino com a sinecura dos cofres públicos em troca de uma falsa tranquilidade atormentada pela chantagem miúda e quotidiana. E em troca receber o silêncio diante de abjetas tratativas, desde a corrupção deslavada e desumana de mirabolantes negociatas de vacinas até o acasalamento desonroso com forcas políticas estrangeiras declaradamente interessadas em apoiar regimes totalitários, como os entendimentos com Trump e sua troupe de malabaristas do direito constitucional e do Estado Democrático de Direito.

Seiscentas mil almas se revezavam nas sessões da CPI da Pandemia. A par dos dramas de suas famílias devastadas, ouviu-se o cinismo oportunista dos que absolviam os flagrantes erros e crimes no combate artificial e mentiroso à Pandemia. Que a esses oportunistas saibam os eleitores punir com a negação de seu voto, expulsando-os do cenáculo legislativo.

Mas, além, muito além disso, será importante que a justiça leve à prisão os que contribuíram com seu descaso para o luto nacional. Depois, ainda em 2022, o povo saiba finalmente avaliar o privilégio que lhe incumbe de reconstruir a nação.

E fazer do Brasil um modelo inatacável de sociedade democrática à luz do que reza a Constituição de 1988, expurgada dos enxertos cancerosos nela inseridos depois de sua promulgação.

Não nos iludamos mais uma vez. Esta tarefa caberá à sociedade unida em torno de um projeto de nação progressivamente menos injusta social e economicamente. O Brasil está em nossas mãos. A experiência histórica de delegarmos nosso destino a figuras carismáticas ou a corporações castrenses ou religiosas talvez esteja na raiz do ódio e da desconfiança disseminados nas veias brasileiras com efeitos tão letais ou maiores ainda do que os causados pela praga da covid. Tarefa difícil, mas não impossível, será transformar em fatos os mitos com que nos enganamos desde os tempos coloniais: a de que o brasileiro é um homem cordial, de que aqui não há racismo, de que em se plantando tudo dá e que os sabiás que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá.

*Embaixador aposentado

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