ARTIGOS

Viva as mulheres argentinas

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Por LÍDICE LEÃO, [email protected]
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Publicado em 22/07/2021 às 18:52

Alterado em 22/07/2021 às 18:52

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres da Argentina. Licença poética 1: trocar a cidade Atenas pelo país Argentina na referência à letra do Chico. Licença poética 2: substituir a ironia buarquiana na descrição das submissas atenienses pelo sentido literal na citação dos exemplos das hermanas, que conquistaram, ao preço de muita insubmissão, todos os avanços na pauta feminista que nós ainda não temos aqui.

Mirem-se no exemplo daquelas mulheres da Argentina. Que acabam de alcançar o reconhecimento do cuidado materno como trabalho que contará tempo para aposentadoria. A medida foi anunciada esta semana pelo governo argentino. O benefício previdenciário será garantido, em princípio, a 155 mil mulheres com 60 anos ou mais que não conseguiram completar os 30 anos de contribuição por terem se dedicado à maternidade. Qualquer semelhança com alguma mulher que você conheça nesta situação aqui no Brasil não é mera coincidência.

O objetivo da ação histórica é promover uma reparação previdenciária no país em que 44% das mulheres que estão em idade de se aposentar não são contempladas com o benefício porque interromperam os trinta anos de trabalho exigidos por lei para cuidar dos filhos. Aliás, cada filho vai equivaler a um ano de aposentadoria recebida. Aliás, no mesmo país que legalizou o aborto, no final do ano passado, depois que uma onda verde linda e feminista atravessou a Argentina, em manifestações lotadas, fortes, alegres e cheias de energia.

Hoje, a legislação do país vizinho permite a interrupção da gravidez até a 14ª semana de gestação. Após esse período, apenas em casos de risco para a vida da mulher ou quando a gravidez é resultado de um estupro. Sabe o que aconteceu? Seis meses depois de a lei entrar em vigor, nenhuma – isso mesmo, nenhuma – mulher morreu por consequência de aborto na Argentina. Enquanto isso, por aqui, o governo obscurantista estuda criar o “Dia nacional do nascituro e de conscientização contra os riscos do aborto”. Avançar para quê?

Mas, como este artigo é para falarmos de conquistas e progressos, continuemos lá no país das nossas hermanas. Lá onde, finalmente, a tarefa do cuidado familiar, destinada às mulheres através de séculos, é reconhecida como atividade profissional. E não apenas como uma obrigação restrita ao mundo privado, dentro do “lar” patriarcal. Lá, onde mulheres como nós construíram uma campanha imensa pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito, e criaram o que foi chamado de “onda verde”, que se espalhou pelas ruas de mais de cem cidades.

Quando a mobilização feminista começa, avança e não para, as conquistas são inevitáveis. Ou seja, no país em que o aborto foi legalizado no final do ano passado, meses depois as mulheres têm a maternidade reconhecida como trabalho com direito a aposentadoria. Nunca é demais lembrar que muitas das grandes revoluções mundiais começaram com a mobilização feminina. Foram as mulheres que se levantaram contra a opressão aos trabalhadores e saíram com panelas vazias às ruas, pouco antes da Revolução Russa de 1917. Antes, também foi uma onda feminista que contribuiu para a eclosão da Revolução Francesa. Já escrevi aqui neste espaço que as mulheres saíram às ruas com tanta sede de participação e desobediência que o teórico monarquista De Bonald afirmou que “a Revolução não teria sido tão revolucionária se as mulheres tivessem sido mantidas à margem dela”. Está no livro Deslocamentos do feminino, da jornalista e psicanalista Maria Rita Kehl, que escreve: “incendiárias, indisciplinadas, ‘buchas de canhão’ nas mais violentas insurreições populares, as mulheres estiveram na linha de frente das manifestações públicas no fim do século XVIII”.

Não, as revolucionárias, “buchas de canhão”, idealizadoras das “ondas verdes” nunca se miraram no exemplo daquelas mulheres de Atenas. E as hermanas mostram disso. E já que estamos falando de Argentina, vale lembrar que ex-militares, ex-pilotos e quatro juízes que participaram diretamente ou colaboraram com os atos de extermínio e tortura durante a ditadura militar foram condenados a longas e variadas penas e até mesmo à prisão perpétua no país. Enquanto isso, por aqui...

Bom, lá os Hermanos têm o Messi e tiveram Maradona. Enquanto isso, por aqui... temos o Neymar. Mas também tivemos Sócrates.

E temos Marta! Nem tudo está perdido por aqui.

Lídice Leão é jornalista, pesquisadora e mestranda em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo

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