A Universidade de Brasília (UnB) foi a primeira universidade federal a estabelecer uma política de cotas raciais para ingresso de novos alunos. Na UnB também funciona o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab), coordenado por Nelson Olokofá Inocêncio, professor do Instituto de Artes (IDA). Inocêncio é autor do livro Consciência Negra em Cartaz e um dos responsáveis pela criação de cursos de história e arte afro-brasileira.
Mestre em Comunicação Social, ele conversou sobre o Dia da Consciência Negra com a Agência Brasil. Ele avalia que o país tem se modificado, assumindo a existência do racismo, mas aponta que a diminuição da igualdade vai exigir políticas públicas que promovam não apenas igualdade, mas equidade. A seguir, os principais trechos da entrevista.
Agência Brasil: Que importância tem o Dia da Consciência Negra?
Nelson Olokofá Inocêncio: Essa data é um marco, foi uma conquista. Quem propôs foi o movimento negro, especificamente o Grupo Palmares, do Rio Grande do Sul, no início dos anos 1970. Esse dia seria, segundo os documentos históricos, o dia que Zumbi dos Palmares foi capturado e morto, quando o Quilombo dos Palmares teria caído nas mãos de Domingos Jorge Velho, bandeirante. Palmares teve uma existência longa e ocupou um pedaço de terra significativo: praticamente todo o estado de Alagoas mais um pedaço de Pernambuco. A data tem um simbolismo enorme, representa a luta da população negra contra o escravismo e a opressão. O Quilombo de Palmares também foi um projeto coletivo. É importante pensar nisso porque a luta contra o racismo também é coletiva e a população negra deve se organizar coletivamente.
ABr: A situação dos negros melhorou desde quando o movimento passou a reivindicar a comemoração da data?
Inocêncio: Eu não posso dizer que nós estamos em uma condição ideal, mas seria ledo engano afirmar que não houve avanço. Se dissesse que não houve avanço, estaria, inclusive, negando o papel do movimento negro na luta pelas transformações sociais, desconsiderando esse legado, essa contribuição significativa do ativismo negro no Brasil nos últimos 30 ou 40 anos. Houve um avanço significativo. Primeiro, um presidente da República reconhecer publicamente que o Brasil produz racismo, que foi o caso do presidente Fernando Henrique no final da sua segunda gestão. Isso é um marco para a cultura brasileira. Até então, o Estado não tinha sequer admitido a possibilidade de ser responsável pela segregação da população negra. Depois, veio o Luiz Inácio [Lula da Silva] que conseguiu desenvolver algumas políticas importantes, como a criação da Seppir [Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial] e a aprovação da Lei 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino da história e cultura negra. E o que é mais importante, conseguiu colocar na agenda oficial o debate sobre relações raciais. Isso é conquista. Quem viveu as décadas anteriores, as últimas décadas do século 20, sabe como foi difícil pautar esse tema, como foi difícil colocar esse tema na agenda. Hoje, inevitavelmente, o debate sobre o racismo está convocado.
ABr: O senhor não citou o Estatuto da Igualdade Racial como avanço, por quê?
Inocêncio: O Estatuto da Igualdade Racial poderia ter sido um avanço. Como ativista, me sinto frustrado porque acompanhei todo o trabalho do senador Paulo Paim [PT-RS] na elaboração e na defesa do estatuto que era muito mais pleno, muito mais expressivo e, lamentavelmente, em função da retaliação, da oposição e da direita, sobretudo no Congresso, nós tivemos um estatuto tímido, muito modesto e muito aquém do que ele poderia ter sido. Eu conheço tanto o texto do Estatuto como era cogitado anteriormente, como o que resultou das negociações no Congresso. Na verdade as negociações foram muito além do possível, nós tivemos que abrir mão de muita coisa, e isso significou um prejuízo. Eu não posso negar a existência do estatuto porque ele foi votado e tem uma relevância, porém muita coisa que ficou fora do estatuto significa um problema.
ABr: Seria estratégico ter segurado a tramitação do estatuto no Congresso?
Inocêncio: Obviamente, devido à composição do Congresso hoje [na próxima legislatura], nós teríamos mais chances de êxito, um estatuto votado com mais elementos, com mais conteúdo do que foi votado anteriormente.
ABr: Em sua avaliação, o estatuto teve um pivô de resistência dentro do partido Democratas?
Inocêncio: Óbvio. Não sejamos ingênuos de achar que as elites nacionais vão abrir mão de seus privilégios, assim, da forma mais altruísta, isso não existe. As elites vão fazer defesa do que elas acreditam. As elites nacionais não vão ceder facilmente. É um processo de muita luta e nós não podemos achar que as verdadeiras mudanças na sociedade vão se dar sem tensões. Esse país quis seguir um projeto excludente.
ABr: Há dados estatísticos que revelam melhorias mas também manutenção da desigualdade. Por que esse abismo ainda é tão difícil de ser fechado?
Inocêncio: Primeiro porque o fosso é muito grande, ele foi construído historicamente ao longo de todos esses anos pós-abolição, ou seja, nós temos mais de um século pós-abolição e agora, no final do século 20, no limiar do século 21 é que a gente tem as primeiras políticas públicas em defesa da população negra, mas é preciso obviamente entender que esse processo será um processo longo, a gente ainda tem que vencer muitas limitações. A gente não pode achar que, com base no princípio da igualdade, a gente vai vencer essas questões. Eu entendo que deve ser levado em consideração nas políticas públicas o princípio da equidade, ou seja, quem tem menos vai ter que ter políticas diferenciadas. Quem foi tratado diferenciadamente ao longo de mais de um século, vai precisar de políticas diferenciadas para chegar próximo dos segmentos que têm vantagens.
ABr: O senhor tem alguma expectativa de que haja mais negros no governo da presidente eleita, Dilma Rousseff?
Inocêncio: Eu acho que ela vai ter um trabalho também porque o Brasil está se descobrindo racista agora. Nós passamos muito tempo ouvindo que o Brasil não tem racismo, mas agora a gente está falando que o Brasil é um país que produz racismo. Lidamos com tema que é tabu. A minha expectativa é que tenhamos mais ministros negros além de Gilberto Gil [ex-ministro da Cultura], Marina Silva [ex-ministra do Meio Ambiente] e Joaquim Barbosa [Supremo Tribunal Federal]. Só é possível entender que o racismo é algo nefasto quando percebemos que as pessoas negras não conseguem ocupar espaços de prestígio e poder. Um dos aspectos mais terríveis do racismo foi tentar afirmar a inferioridade intelectual dos negros. Esse, pra mim, é um dos campos prioritários, o campo do conhecimento e o campo do poder. É fundamental que os negros estejam aí provando que são gente como quaisquer outras e que precisam ser respeitadas também.
ABr: Durante as campanhas para que o Brasil se tornasse a sede da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016, foi dito ao mundo inteiro que este é o país da harmonia. As teorias sociais que criaram esse conceito prejudicaram a visibilidade do preconceito?
Inocêncio: Inevitavelmente isso [harmonia] não se sustenta. O maior exemplo que a gente tem hoje é essa terrível intolerância religiosa, esses ataques explícitos às religiões de origem africana que nós vemos na mídia todos os dias. Na verdade, a gente tem provas suficientes de que essa cordialidade [conceito do livro Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda] é muito mais um argumento, é muito mais um discurso que algo vivenciado na prática. Óbvio que existe uma cordialidade sim, mas existe uma contradição. Ao mesmo tempo em que você tem essa cordialidade, existe também uma série de limitações e uma série de preconceitos. Essa visão paradisíaca do Brasil não tem como se sustentar porque, na verdade, está servindo como uma maneira de impedir nossa visão mais ampla em relação às tensões e contradições que a gente tem. Não estamos falando só de racismo, mas tem preconceitos regionais, é um país onde se mata muita mulher, onde a gente está começando a entender a importância de se respeitar as pessoas que estão na terceira idade. Então, essa tese da cordialidade pode ser um ideal, mas ela não se sustenta quando você olha para o dia a dia.
ABr: Como o senhor viu a polêmica recente em torno do livro Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato?
Inocêncio: Eu fico frustrado com nossos governantes porque, às vezes, eles perdem oportunidades fenomenais de estabelecer um grande debate nacional. Essa situação, não só o Monteiro Lobato, mas o que a cultura brasileira produziu de racista não só literatura, mas cinema brasileiro, teatro brasileiro, música brasileira, as artes plásticas brasileiras deram um respaldo significativo aos estereótipos raciais. Acho que não podemos ter essa arrogância de achar que nós sabemos de tudo, nós somos seres humanos e como seres humanos nós temos a nossas limitações. Arnaldo Jabor saiu em um comentário de rádio dizendo: o que vai ser do “teu cabelo não nega”, “nega do cabelo duro, qual é o pente que te penteia”? Isso, para mim, é um deboche, um escárnio. Achar que isso é lindo, que isso é cultura brasileira. Sim, é cultura brasileira, mas também é cultura preconceituosa, que estigmatiza os negros, assim como a imagem da “nega maluca” no carnaval, assim como o Stanislaw Ponte Preta, o Sérgio Porto e o seu “samba do crioulo doido”, tudo isso é deboche. São maneiras de desqualificar, de desumanizar os negros. Eu não estou colocando em xeque a competência das pessoas, mas eu estou dizendo o que elas pensaram, e o que foi pensado na cultura brasileira a partir do que se chama de clássico. Toda produção artística existe para ser alvo de reflexão, objeto de discussões. Agora, se existe uma opção que por ser histórica, por ser clássica eu não posso discutir, isso pra mim é um convite à mediocridade.
Edição: Lílian Beraldo