ARTIGOS

Patentes médicas e a Peste

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Por ADHEMAR BAHADIAN
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Publicado em 11/04/2021 às 08:18

Alterado em 11/04/2021 às 08:18

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A Peste nos tem revelado o lado obscuro de nós mesmos. Nosso ministro da Economia, diante da miséria de parte substancial de nossos pobres e sem-tetos, classificou-os como invisíveis. O adjetivo cruel descreve a indiferença social a se agregar aos desajustes econômicos de nosso país.

A Peste talvez esteja a nos alertar a todos. Parece uma corte de anjos de Sodoma e Gomorra a incendiar indiscriminadamente países, cidades e povos com uma mensagem clara e assustadora. Nós, os humanos, somos os vírus a ser destruídos antes que o bioma terrestre seja irrecuperável pela nossa indiferença à casa que nos abriga, ao clima que nos aquece, às matas que nos alimentam. Somos predadores.

Irremediáveis predadores de nossa própria espécie e das demais a nos cercar. Consideramos o outro, humano, vegetal ou animal, pasto infindável diante de nossa cobiça e de nossa gula.

Os negacionistas - e somos muitos, uns por parva ignorância, outros por arrogante soberba - contam os dias para a volta aos "tempos normais" não importa o preço que se pague em vidas inocentes ou não. Somos brutais.

Aqui no Brasil há quem se permita debochar da Peste. Temos diante dela a mesma indiferença com que durante séculos transformamos nossos rios em esgotos putrefatos com o nosso dejeto cotidiano; nossas cidades em paraísos de ratos de todos os gêneros e espécies; nossas casas em falsas fortalezas diante do mundo inóspito a nos rondar.

E a Peste decreta não valermos o sacrifício que impusemos ao meio-ambiente. E estamos a pagar com nosso medo e o terror de nossa morte o preço desta anarquia, a pantomima desta convivência a que chamamos civilização.

Uma civilização incapaz de real solidariedade sequer na hora em que somos abatidos como insetos nos corredores de hospitais desprovidos dos recursos médicos de que até então tanto nos orgulhávamos. A Peste é a escassez. É o espelho em que cegamente evitamos reconhecer nossa própria imagem, por tantos anos adulada como se fossemos realmente senhores do mundo, donos de arsenais de armas nucleares que o polegar de um psicopata um dia poderia pressionar pelo simples poder de destruir.

Quantos de nós precisam morrer para que enfim renasça a consciência de que somos todos fracassados em nossa empáfia e na arquitetura de nossos sentimentos sempre narcíssicos, desesperadamente empobrecidos pela astúcia de nos julgarmos melhores por sermos peritos na arte de enganar, de surrupiar e deixar no rastro de nossas vidas o fétido odor do auto-engano e da mentira?

O homem é um projeto que deu errado. E hoje, na tentativa de remendá-lo, nos encaminhamos resolutos para o último gesto insano. O de simplesmente apagar de uma vez para sempre nossa inteligência e embarcarmos definitivamente nas consequências de nosso ódio reprimido. Já nos sugere claramente o líder negacionista. Um tiro. Dois tiros. Uma multidão abatida a tiros numa limpeza étnica em nome do mito, dos mitos dos super-homens escolhidos para fazer do retorno às cavernas uma nova ânsia de viver como joguetes escravizados a deuses e totens. A Peste é iluminadora.

Aproxima-se a hora fatal em que teremos de decidir. Já estamos metidos em camisas de onze varas sem saber para onde vamos e em muito condicionados pela cupidez de uma minoria a fartar-se com o lucro exponencial da exploração de cidadãos que já não conseguem por à mesa o pão de cada dia. O leite das crianças.

Os líderes perderam a sensatez há muito. O mercado, esta entidade esotérica e canibal, chupa os dedos magros dos despossuídos numa volúpia voraz. Não reconhecemos ainda, mas somos exércitos em marcha para o morticínio.

A escassez de vacinas é um simples e macabro exemplo de como somos manipulados por forças que sequer conhecemos e com as quais nos aliamos infantilmente uns, maliciosamente outros.

Desde os anos 80 do século passado, nos curvamos docilmente ao maior conto do vigário de que se tem notícia nos anais do inferno. Um punhado de multinacionais, articuladas em engrenagem azeitada pela cupidez, se constitui em mais do que óbvio cartel. Por meio de “lobbies” registrados em cartórios financia campanhas eleitorais de Congressistas dos Estados Unidos da América, subsidia médicos carreiristas e influi tanto na política quanto na academia em favor do mito da pesquisa médica privada como salvadora da humanidade.

Surge deste concubinato político a criação na OMC (Organização Mundial do Comércio) de um dos mais leoninos acordos internacionais já elaborados a que se deu o nome de TRIPS, acrônimo em inglês de Acordo sobre proteção intelectual relacionado ao comércio.

Neste acordo, as patentes farmacêuticas - mas não apenas elas - se transformam em instrumento de monopólio quase perene através de artifícios jurídicos elaborados por advogados regiamente pagos pelas organizações e sindicatos patronais da indústria farmacêutica mundial.

É verdade que os agentes governamentais dos Estados Unidos trataram de estrumar o terreno com uma campanha sórdida de terrorismo comercial junto a países, o Brasil dentre eles, e a pequenas e médias empresas, dentre as quais brasileiras.

O teatrinho funcionou com o seguinte roteiro: parlamentares americanos pressionados por lobistas conseguiram fazer aprovar dentro da lei de comércio dos Estados Unidos uma secção especial sobre proteção aos direitos de propriedade intelectual; em seguida, criou-se um mecanismo supervisor dentro de governo americano para identificar países e empresas que na compreensão americana violavam leis de propriedade industrial dos Estados Unidos da América. Não de um acordo internacional. Mas, de uma lei doméstica que se arvorava competente internacionalmente. E o caos se instalou.

Do dia para a noite, o Itamaraty recebeu inúmeros empresários preocupados com a possibilidade de terem suas exportações para o mercado americano de alguma forma constrangida ou mesmo interrompida. A angústia dos empresários era mais do que compreensível porque as decisões das autoridades americanas resultavam de consultas e queixas dos empresários daquele país e muitas vezes tinham objetivo anti-competitivo e prejudicavam a exportação de produtos brasileiros em razão do preço, inteiramente desvinculado da questão da propriedade intelectual.

De qualquer forma, o mecanismo de pressão americano funcionou para minar a resistência de países em desenvolvimento ao tratamento do tema da propriedade intelectual na OMC.

O resultado final foi a elaboração do Acordo Trips, obra de advogados de propriedade intelectual em que as patentes farmacêuticas adquiriram um forte viés monopolista, fazendo com que as leis domésticas de propriedade intelectual seguissem o mesmo padrão, inclusive no Brasil.

Apenas a Índia - excluindo-se a China - conseguiu resistir por algumas décadas a pressões da indústria farmacêutica norte-americana, o que muito explica o notável avanço da Índia no campo das vacinas, que hoje observamos. E de que dependemos.

Para piorar as coisas, a indústria farmacêutica internacional continuou pressionando os países em desenvolvimento para aceitarem em acordos bilaterais de comércio dispositivos mais restritivos da liberdade de legislar domesticamente sobre propriedade intelectual. Em grande parte por influência do Congresso Nacional, o Brasil não teve nenhum desses acordos bilaterais lesivos, negociados no período Collor- Fernando Henrique, ratificados pelo Congresso.

Nem por isso, deixamos de sofrer pressões dos Estados Unidos da América, sobretudo nas negociações da ALCA, já no governo Lula, onde foram resistidas adequadamente apesar de alguns muxoxos das áreas agrícola e de indústria e comércio do governo. Infelizmente, no governo atual assinamos - mas ainda não foi ratificado - o Acordo União Europeia-Mercosul, onde as disposições sobre propriedade intelectual estão a merecer escrutínio do Congresso. Ainda no mesmo diapasão, o Supremo Tribunal Federal deverá decidir nesta semana que hoje se inicia a eventual constitucionalidade de interesses da indústria farmacêutica internacional em prorrogar o prazo de patentes por mais de 20 anos no Brasil. Manobra perversa da indústria a confirmar suas intenções de sempre aprofundar a natureza monopolista das patentes farmacêuticas. Nessas horas os advogados brasileiros da indústria internacional nos advertem que, se o STF recusar o pleito, o Brasil confirmará a insegurança jurídica do país, o risco de sermos abandonados por investidores estrangeiros etc. Uma ladainha hipócrita que não resiste a uma análise séria sobre as chicanas jurídicas históricas que levaram a questão das patentes farmacêuticas ao palco da mais absurda, descarada e mentirosa teoria relacionada ao comércio internacional.

Muito da desgraça que vivemos hoje no Brasil deriva de atitudes imperdoáveis por insensibilidade e ignorância do governo atual. Ocorre que será ilusório imaginar que possamos retomar o caminho de um desenvolvimento econômico e social mais equânime sem compreendermos a profundidade dos erros cometidos no passado e sobretudo a partir dos anos 90 do século 20. A Peste neste sentido pode transformar-se em nossa consciência crítica. Nossa esfinge.

De qualquer forma, a disjuntiva é clara e insofismável: a realidade de uma escassez de oferta resultante de cartelizações e monopólio estimulada por leis abusivas confrontada com a progressiva morte de milhões de pessoas a que não chegam vacinas e insumos médicos. Uma rapina. E o atestado de óbito de uma doutrina econômica que se pretende vender ao Brasil como única alternativa possível. Até quando?
Continuarei com essas reflexões em sua companhia, leitor, no próximo domingo.

*Embaixador aposentado