ARTIGOS

O vendedor de contas

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Por RICARDO A. FERNANDES, [email protected]
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Publicado em 08/04/2021 às 19:30

Alterado em 08/04/2021 às 19:30

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A cidade interiorana se foi. Esta semana, o silêncio nas ruas vazias deu espaço a sons de britadeiras. Começam às seis da tarde e seguem por horas. Ao triturarem as ruas, afetam nossos ouvidos num ruído urbano que seria reconfortante se indicasse voltarmos a um passado dinâmico, vivo, sem quatro mil mortes diárias.

Duas noites insones provocadas pelas máquinas quebradeiras e ontem de manhã escutei, na rua, alguém gritar “Olha a conta”. Cansado que estava, cogitei ter tirado um cochilo e tido um pesadelo, que passaria assim que a conta chegasse. Mas era real. Um homem, na rua, oferecendo contas? Quem compraria?
O sujeito batia palmas. Talvez chamasse a vizinha, uma senhora com problemas de audição. Ou então fazia das contas seu meio de vida. Venderia suas próprias contas? Pagamento em duas vezes? Não. Pagamento duplo, ao vendedor e à empresa credora. Não precisei imaginar as pessoas se escondendo debaixo das mesas, fugindo do caixeiro dos débitos.

Levantei a carcaça da cadeira e fui até o interruptor, a me certificar de ter pago a conta de luz. Poderia ser a concessionária cobrando eventual atraso. Verifiquei os extratos bancários, tudo em dia. Ainda assim, por precaução, aguardei até a voz silenciar e fui à frente da casa. Olhei a caixa de correspondência e lá estava ela: a conta. Valor dobrado.

Gastei parte da tarde tentando acionar o atendimento ao consumidor da companhia de energia para corrigir a injustiça. Em vão. Continuarei tentando, já que não resta alternativa a não ser brigar para não ser roubado.

Só não pode faltar luz, nem que seja para ler livros. Livros cujo setor vem sendo atacado pelo governo. Esta semana, o vendedor de contas da Receita Federal, Paulo Guedes, e sua equipe, a fim de retomar a discussão sobre a necessidade de aumento de impostos sobre os livros, publicou uma cartilha com perguntas e respostas acerca da CBS – Contribuição sobre Bens e Serviços. Na cartilha, ele alega serem os ricos os que mais leem no Brasil, portanto poderiam pagar mais.

Não é verdade. A pesquisa “Retratos da Leitura”, realizada em 2020, mostra que a população com menor poder aquisitivo é a responsável pela maior quantidade de leitores e consumidores de livros. Somente na dita Classe C, são 27 milhões de leitores. Além da mentira, é risível a justificativa favorável ao aumento de impostos. No item 14 da cartilha, diz a Receita: “dada a escassez dos recursos públicos, a tributação de livros permitirá que o dinheiro arrecadado possa ser objeto de políticas focalizadas, assim como é o caso dos medicamentos, da saúde e da educação no âmbito da CBS”. Políticas focalizadas? Quais?

Paulo Guedes, além de péssimo vendedor de contas, é um horroroso contador de piadas. Se lesse mais, ao menos não escreveria bobagens. Mas leitura não parece ser o seu ponto forte. Talvez nem mesmo precise cultivar o hábito, subalterno de quem é. Que não se preocupe com a leitura, vá lá, deve fazer tempo que Guedes não folheia um livro. Mas, como Ministro da Economia, deveria ao menos se preocupar com a queda do consumo de bens e serviços, livros aí inclusos. A “Retratos da Leitura” mostra o óbvio: para a chamada Classe C, o aumento de preços nos livros é um dos fatores mais sensíveis ao consumo. Quem paga a conta?

Se o ministro analfabeto funcional tomasse seu próprio exemplo, talvez não acreditasse que, no Brasil, pessoas ricas lessem mais do que pobres. Pode ser, também, que Guedes só leia o que ele próprio escreve, como a cartilha publicada pela Receita Federal, o que é mais preocupante. Se eu trabalhasse para a tal instituição, estaria apreensivo. Pois, dada a sua incapacidade de gerar receita, poderia mudar o nome para “Despesa Federal”.

Publicitário, escritor e membro da União Brasileira de Escritores-SP