ARTIGOS

A Cidadania e a intentona (final):o D de desprezo, o h de horror e o i de insensatez

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Por ADHEMAR BAHADIAN, [email protected]
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Publicado em 17/01/2021 às 09:54

Alterado em 17/01/2021 às 09:59

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Quando comecei a escrever esta série de artigos subordinada à ideia geral de cidadania e intentona não imaginava minha tarefa seria imensamente facilitada pelo presidente dos Estados Unidos da América. A intentona de Trump contra o Congresso americano, transmitida a cores para todos os televisores do planeta, fracassou após algumas horas em que a insensatez de Donald se revelou pelo odor de tumor lancetado.
Embora seja imprevisível o destino político de Trump, a intentona fracassada ficará na história dos Estados Unidos como data em que os salões do Capitólio foram estuprados por tropas bárbaras a gritar “enforquem o vice-presidente”, “matem a líder do Congresso”. E não estávamos nas terras de Idi Amim Dada. Era Washington DC.

Donald em quatro anos fez renascer o ódio racial, mal ou bem serenado desde os anos de Lyndon Johnson. De repente, voltam aos lares americanos as cenas de macarthismo, da John Birch Society e do Ku Klux Klan. Trump fez a America ser grande de novo pelo ódio, pelo apelo à Guerra Civil. E, sempre a se isentar de responsabilidade diante dos que lhe cobravam equilíbrio de Estadista, evadia-se em mentiras tão obviamente esfarrapadas como se a ignorância de seu povo tivesse a mesma dimensão de sua psicopatia.

Vimos o filme e imediatamente tivemos receio de que, mal dublado, reprisasse nas telas do Brasil.
Não há de ser por falta de incentivo da parte de nosso presidente, ele também admirador embevecido de Donald, de seus métodos e de seus esgares, embora longe de seu talento oratório e de seu carisma. Não lhe faltam, porém, a insensatez endógena e o autoritarismo genético.

Trump pretende regredir a nação americana aos tempos da segregação racial e da supremacia branca. Aqui se pretende reinstalar a sociedade escravocrata e patrimonial que plasmou nossa história desde a colonização. Voltar à harmonia da Casa Grande e Senzala. Os propósitos são idênticos e o desrespeito às instituições democráticas claramente similares.

Não falo de hipóteses, infelizmente. Já ouvimos reiteradas vezes e reiteradas vezes assistimos a mesma estratégia de dividir o país em segmentos inconciliáveis na inédita expansão de armas entre cidadãos como justificativa a um confronto sangrento a se avizinhar.

Felizmente, parcela substancial da imprensa, e nela comentaristas políticos insuspeitos de vinculações a ideologias totalitárias sejam de esquerda ou de direita, já se pronunciam de forma contundente sobre os riscos à democracia brasileira e ao Estado Democrático de Direito.

A mortandade expansionista da Peste, minimizada pelo discurso governamental, se aprofunda pela imprevidência criminosa no atraso da vacinação maciça da população, sempre adiada ora pela declarada descrença do governo sobre a eficácia de vacinas ou pela absurda indiferença diante dos esforços universais pelo combate ao vírus.

O Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal parecem igualmente preocupados com a temeridade das atitudes governamentais diante da Peste, sem que efetivamente consigam reverter as insanidades diárias a transformar cidades brasileiras em enfermarias a céu aberto, onde adultos e crianças morrem asfixiadas por falta de planejamento logístico e sobretudo de solidariedade humana. Fotografias de uma Manaus devastada correm o mundo como exemplo de incúria governamental. A Venezuela, tão recriminada e excomungada por nossas autoridades, nos recorda uma singela lição de solidariedade regional. Alguém tem notícia de Guaidó ?

A derrota eleitoral de Trump recebeu aqui ostensivo apoio a fantasiosas fraudes eleitorais do sistema americano a nos identificar diante do presidente eleito Biden como apóstolos do Judas a atrair de forma ensandecida e despropositada nosso país para um círculo de poucas nações antagônicas ao visível esforço de reconstrução democrática dos Estados Unidos da América. O que pretendemos ganhar com isto? Que outro mandatário de país no planeta se mostrou tão gratuitamente solidário a uma cantilena psicopática, rejeitada pelas cortes de justiça do conservador sistema judiciário americano? A Coréia do Norte?

No Brasil, parlamentares procuram patrioticamente conformar um arco suprapartidário unido em torno da defesa do texto constitucional na esperança de conter a intentona agendada pela ideologia retrógrada com data anunciada publicamente. Contra esse esforço conspiram igualmente o fisiologismo atávico da política brasileira e a ingenuidade messiânica a pretender caminhar isolada num campo minado pelo ressentimento e pelo ódio enraizado. Não será a primeira vez que as boas intenções asfaltarão a estrada para o inferno. E a incapacidade de unir por consensos mínimos será abandonada pela ilusão de mensagens tão ultrapassadas quanto as que pretende combater. Apenas a consciência de prioridades nos levará à maturidade do pacto político.

Neste cenário gravita a sociedade brasileira perplexa e aterrorizada pela pestilência e pela monstruosidade de pressentir no horizonte a adaga da intentona urdida por quem deveria ser o primeiro a denunciá-la. Esta inversão de valores, em nome de falsos pressupostos na condução da economia brasileira - um desastre grandiloquente -, de anquilosados costumes de convivência social e de visão macabra do futuro da nação, é o verdadeiro anticristo a se levantar de punho cerrado a tudo e a todos .

A cidadania brasileira está diante de sua esfinge. Decifrá-la talvez seja o mais simples. Difícil será evitar a Intentona à letra e ao espírito da Constituição de 1988 por aqueles que juraram respeitá-la, mas que a ela não têm respeito nem temor. O resto é o resto.

Nós, cidadãos brasileiros, devemos nos unir à frente democrática interessada em abortar o mostrengo a germinar nas entranhas do golpismo autoritário. Encorajar nossos parlamentares sobre a importância de trabalharmos juntos na construção de um país menos desigual social e economicamente como nos manda a Constituição de 1988, nossa garantia de unidade territorial e federalismo democrático

Fora disso será aderir a um trumpismo fracassado e provavelmente genocida. Uma aventura de sociopatas em benefício da cultura da expropriação - humana e material - sempre vitoriosa neste país de percepções equivocadas, relutante em assumir a identidade das raças múltiplas de seu povo, instrumento essencial na construção de uma cidadania unida e consequente.