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Cidade Maravilhosa dum branco Estado de exceção

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Se existe Criador, o Rio de Janeiro é obra de arte. No Leblon, o Morro Dois Irmãos faz lembrar dois fartos seios de mulher, é como se a natureza quisesse nos dizer que pedras foram esculpidas para o erotismo do que viria a ser a Cidade Maravilhosa.
Tamanha beleza, sabemos, é graça divina ofertada aos mortais, por isso, no Rio, percebemos que o sentido mais profundo da palavra divino é a gratuidade da natureza. Se povos antigos ofereciam seres humanos para aplacar a ira de um deus, o Criador ofertou aos cariocas e aos visitantes cores e formas variadas para não aplacar nosso prazer pela vida.
O que nós, humanos, fizemos para merecer tanto? Nada, pois o divino é isso: doação. Os mortais destas terras jamais fizeram algo, minto, só um tipo de mortal fez por não merecer essa gratuidade: políticos brancos, corrijo-me, a imensa maioria deles.
E não só políticos: teólogos brancos também, que escolheram uma árvore e, preso a ela, um corpo seminu ferido por três flechas. Se o Rio de Janeiro é prazeroso aos olhos e à pele por causa do Criador, sacerdotes, porém, escolheram como padroeiro destas fartas e belas terras a dor e a morte na imagem de São Sebastião.
Sempre branco no Rio de Janeiro foi o poder de governar em nome da Justiça. E, em nome dela, um conluio de interesses brancos reuniu-se no Senado para aprovar a Lei 601, de 18 setembro de 1850, impedindo que escravos obtivessem posse de terra por meio do trabalho e permitindo que, com subsídios governamentais, colonos do exterior fossem contratados, desvalorizando ainda mais o trabalho de negros. Um ano antes da lei, o Rio de Janeiro repartia-se entre 155.864 homens livres e libertos e 110.302 escravos, dados retirados do clássico “Pereira Passos: um Haussman Tropical”, de Jaime Larry Benchimol.
Como se isso ainda não fosse injusto, o poder do branco, que governa instituições, cospe e despreza qualquer política de alfabetização antes ou depois da Lei Áurea. A escola primária não importa. Livre do tronco e da senzala, negros, até hoje, não se livraram da chibata da subdesescolarização.
Sem terra e sem a palavra lida e escrita, a mão de obra dos afrodescendentes da capital do Rio de Janeiro ocupou morros e matriculou-se em escolas públicas, sempre escravas de políticas brancas. Entretanto, porque a injustiça contra o negro, ao longo de séculos, foi batizada em nome de Deus, a ironia é que hoje ela se faz onipresente e onipotente na Cidade Maravilhosa de São Sebastião: o comércio informal e precário é mais negro do que branco, a mendicância é mais negra do que branca, a força do tráfico de drogas é mais negra do que branca e o assalto aos cofres públicos de uma Lava Jato é só branco e nenhum negro. São Sebastião é padroeiro em estado de exceção.
Em “Brasil, um país do futuro” (pág. 181), Stefan Zweig se refere às favelas, onde “esses negros aqui se sentem mil vezes mais felizes do que o nosso proletariado em suas casas de aluguel. (...). Moram em casas próprias, podem fazer e deixar de fazer o que quiserem, à noite podem ser ouvidos cantando e riso”. Sob o olhar desse austríaco, é reconhecida a encantadora alegria negra nos morros, cujo corpo dança ao som do samba após esse mesmo corpo, amarrado ao tronco, ter sentido dolorosas injustiças ao som da chibata. Se pulsa alegria na cultura carioca, devemos isso, em grande parte, à força exuberante da negritude.
O mesmo corpo negro que dorme, fétido e esfarrapado, à porta do Bradesco ou do Banco do Brasil na Avenida Presidente Vargas também é o mesmo corpo que faz esta cidade ser maravilhosa. Por meio de sua religião, que é arte, que é dança, que é canto, que é comida, que é expressão divina, a negritude criou seu “estado de exceção”, no sentido de sempre ter ameaçado a ordem constitucional, escrita pela mão branca. Escreve Stefan Zweig que não imagina “os morros da Gávea sem essas pequenas aldeias ousadamente encarapitadas nas rochas”, pois, nessas hoje tão grandes aldeias, a alegria de dançar e de cantar se reinventou.
A política do século 21 precisa corrigir a Lei 601 do século 19, dando o direito não só de propriedade da terra aos moradores das favelas; mas, muito além disso, investir em ótimas escolas públicas, em ótimos espaços esportivo-culturais, em ótimas salas de cinema nas escolas, em ótimos postos de saúde, além de outras ótimas ações do poder público, que pertenceu sempre ao branco.
Não basta ser só Cidade Maravilhosa pelas mãos do Criador, ela precisa ser Justa pelas mãos unidas de homens públicos, a fim de que seja assinado, pela primeira vez, um pacto por uma política de Estado. Políticos precisam parar de flechar uns aos outros. Assim como São Sebastião, o Rio sangra.


* Professor de Filosofia e livre-pesquisador do Ateliê de Humanidades

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