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Eduardo Giannetti: Redução da globalização não condena o mundo à direita populista

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Por JORNAL DO BRASIL com Broadcast Político

Publicado em 07/05/2022 às 08:26

Alterado em 07/05/2022 às 08:26

Eduardo Giannetti, o imortal Foto: Reuters/Nacho Doce

Cristiane Barbieri - Eleito membro da Academia Brasileira de Letras pela respeitada obra na qual faz reflexões sobre caminhos e destinos do Brasil, o economista e escritor Eduardo Giannetti esperava que forças políticas progressistas "se unissem para impedir o tremendo risco e perigo de um bolsonarismo renovado nas ruas". Não viu o movimento acontecer, mas diz que os mais de 640 mil mortos na pandemia cobrarão seu preço nas urnas, bem como o fato de Jair Bolsonaro não ter mais os grupos que o levaram a se eleger a seu lado - um peso que valerá tanto para o bem e para o mal. Depois do populismo eleitoral, segundo Giannetti, agora é a vez da guinada populista fiscal e conseguida a canetadas com "fins claramente eleitoreiros".

Na primeira de duas partes dessa entrevista ao Broadcast, Giannetti fala sobre as perspectivas da eleição e dos movimentos que levaram à ascensão da direita populista em todo o mundo: a hiperglobalização, a tecnologia e a crise de 2008. Fatores desestabilizaram setores da sociedade, que pedem a volta ao passado. "A extrema direita populista sabe trabalhar como ninguém com o sentimento de medo e de insegurança. É preciso colocar o Bolsonaro dentro de um contexto mais amplo: ele não é um raio em céu azul", afirmou.

 

Broadcast: Há algum candidato à terceira via que pode se tornar competitivo até as eleições em outubro?

Eduardo Giannetti: Os ingleses têm um ditado que diz "uma semana é um tempo longo na política". A política tem uma dinâmica e uma temporalidade muito acelerada e, portanto, é perfeitamente possível. Agora, quanto mais a gente se aproxima da eleição, mais remota parece essa possibilidade. Principalmente diante da ausência de um nome que seja realmente capaz de catalisar a parte ponderável do eleitorado que preferiria ter uma alternativa à polarização Bolsonaro e Lula. A dificuldade é encontrar um candidato que consiga galvanizar esse eleitorado que não deseja repetir em 2022 a polarização raivosa que houve em 2018 e que está se anunciando mais uma vez.

 

Qual é o problema da disputa entre Lula e Bolsonaro?

Ambos dividem o Brasil, cada um à sua maneira e por distintas razões. Não é bom ter uma eleição em que os candidatos representam um País rachado ao meio e despertam rejeição do outro lado, em níveis muito altos. O perigo disso descambar para um cenário de violência e de conflito é muito grande.

 

Nas últimas eleições, havia um cenário de repúdio à corrupção, por conta da Lava Jato. Há algum tema central agora, que poderia atrair os eleitores em torno de algum candidato?

Em 2018, havia muito mais do que repúdio à corrupção. Era o descrédito da política institucional brasileira, que começou a se anunciar na eleição raivosa de 2014. Quando o Eduardo Campos morreu, Marina Silva galvanizou um eleitorado que estava cansado da polarização PT-PSDB. Durante um período, ela pareceu uma candidata muito forte, mas foi violentamente atacada, massacrada até, pela campanha da Dilma, liderada pelo (publicitário) João Santana. Estamos assistindo a ondas de descontentamento com a política institucional brasileira e a eleição de Bolsonaro é um capítulo desse enredo.

 

Como assim?

Ele pareceu, para muitos brasileiros, como alguém que vinha de fora dessa política necrosada, na qual a corrupção era um elemento central. Mas não era só a corrupção. É um País que arrecada mais de um terço do PIB em impostos e não entrega políticas públicas à altura do nosso nível de renda e de desenvolvimento. Tem alguma coisa muito errada aí. A gente não pode perder de vista a seriedade deste fato. Não é à toa que há uma desilusão com tudo o que a redemocratização prometeu para a sociedade brasileira. As manifestações de 2013 e dos caminhoneiros são parte desse processo. Estamos vendo realmente ondas sucessivas de descontentamento com a política de bons anos para cá.

 

O fiasco das manifestações de 1º de maio faz parte desse cansaço com a política?

Nenhum político brasileiro hoje consegue mobilizar a população para a rua. O Bolsonaro que pareceu erroneamente, em 2018, ser alguém que vinha de fora, um outsider, na verdade nunca o foi. Ele estava há 30 anos no Congresso, onde não fez absolutamente nada, exceto propor a autorização da pílula do câncer. É preciso colocar o Bolsonaro dentro de um contexto mais amplo: ele não é um raio em céu azul. Não é algo isolado de um processo que está ocorrendo em escala planetária, que é a ascensão de uma direita populista. Esse fenômeno se reflete em muitos países com características distintas em cada um, mas com um substrato comum. É o Donald Trump nos EUA, o Brexit na Inglaterra, a Marine Le Pen na França, o Recep Erdogan na Turquia, o Viktor Órban na Hungria, a nova direita italiana... Está espalhado por aí.

 

O que está por trás desse fenômeno?

São três fatores fundamentais e transversais. Primeiro, a globalização incorporou centenas de milhões de asiáticos ao mercado global de trabalho. São pessoas muito disciplinadas, altamente produtivas e dispostas a trabalhar remuneradas por uma fração pequena do que ganham seus pares no Ocidente. Isso destruiu o poder de barganha dos trabalhadores no mundo e gerou ressentimentos. A proposta de Trump de "fazer a América grande de novo" é a promessa de volta ao mundo antes da globalização. O segundo fator é a tecnologia, que gerou insegurança em muitos setores econômicos e agravou a desigualdade porque deu um bônus para quem é altamente qualificado e deprimiu o trabalho de quem não é. Gera muito medo e insegurança porque não se sabe se seu emprego vai existir, se seu setor econômico pode desaparecer a qualquer momento.

 

São dois movimentos de volta ao passado…

A extrema direita populista sabe trabalhar como ninguém com o sentimento de medo e de insegurança. Com essa ansiedade por ordem, por coisas conhecidas, é sempre o apelo da volta ao passado, dos valores tradicionais e de que o mundo não vai mudar radicalmente. Um elemento adicional em relação à tecnologia é a questão de seu uso na política. Não consigo conceber fenômenos eleitorais como Trump e Bolsonaro sem mídia e redes sociais. Eles souberam melhor do que os outros tirar proveito das novas tecnologias. Mutatis mutandis, não é muito diferente do que aconteceu na República de Weimar: Hitler soube usar o rádio e cinema, que eram as "redes sociais" da época, muito à frente dos políticos tradicionais alemães. Contratou grandes diretores de cinema para fazer espetáculos muito elaborados esteticamente. Usou discursos no rádio e realmente saiu muito na frente no uso da tecnologia. Estamos vendo isso se repetir agora.

 

E o terceiro fator?

Foi a crise financeira de 2008 e 2009, que mostrou um sistema econômico completamente assimétrico e tirou a legitimidade do status quo econômico e político. A assimetria gravíssima que ficou escandalosa na crise era que, enquanto o sistema financeiro estava ganhando centenas de bilhões de dólares, na euforia dos anos precedentes, ai de quem ousasse dizer que o dinheiro deveria ser dividido. Na hora que o esquema quebrou, as perdas foram socializadas. Tem alguma coisa profundamente errada num sistema em que os ganhos são apropriados por poucos e as perdas são compartilhadas por muitos. Foi mais um elemento de deslegitimação da ordem política e econômica das décadas anteriores. Esses três fatores dão conta da sincronicidade da ascensão de uma direita populista em escala planetária.

 

Os efeitos da globalização não foram positivos?

É ótimo incorporar centenas de milhões de chineses e indianos, que estão vindo de uma pobreza e de uma miséria extrema para uma vida urbana com mais rendimento e mais próxima de um padrão dos séculos 20 e 21. Mas era preciso ter desenhado políticas para atenuar o impacto socioeconômico de quem foi prejudicado por essa incorporação. No caso americano, foi uma perda de horizontes, que levou a um fenômeno realmente gravíssimo, que o ganhador do Nobel de Economia Angus Deaton chamou de "mortes por desespero".

 

O que é isso?

Para um jovem do sexo masculino de 18 anos, a probabilidade de morrer antes dos 50 é maior nos Estados Unidos do que em Bangladesh. São "deaths of despair": opioide, abuso de drogas, suicídio e doenças do fígado ligadas ao alcoolismo. A expectativa de vida dos EUA está em declínio há vários anos. É a primeira vez que isso acontece num país na modernidade, desde o século 18. É uma crise civilizatória, de falta de perspectiva, de horizonte e de esperança, na população de meia idade. Isso resulta em toda essa revolta contra a globalização que era a salvação do mundo e na busca de líderes que ofereçam uma volta ao passado, uma segurança e algum tipo de expectativa de uma mudança radical.

 

Teremos uma nova globalização?

A globalização já vinha sofrendo um processo de refreamento desde a crise financeira de 2008, como mostravam indicadores de comércio internacional e de fluxo de capitais entre países. Com a pandemia, esse processo se aprofunda porque a crise sanitária revelou o perigo de depender de poucos fornecedores para produtos vitais às cadeias de suprimentos. Quando estamos saindo da pandemia, vem a guerra, que reforça a tendência à maior regionalização. Não será o fim da globalização, mas muita coisa não vai voltar ao que era antes.

 

Isso é inédito?

É curioso que esse movimento tem precedentes. O fim do século 19 e início do século 20, até a primeira guerra mundial, foi um período muito forte de globalização comercial e financeira. O mundo só recuperou o grau de globalização do início do século 20 nos anos 80 do século 20. Depois de meados dos anos 80, houve a hiperglobalização. Os historiadores futuros provavelmente vão datar o fim da hiperglobalização na crise financeira de 2008, acentuada pela pandemia e pela Guerra da Ucrânia.

 

Com a globalização em menor escala, é inevitável essa migração à direita populista?

Inevitável não é. A França acabou de mostrar que a coalizão democrática e de certa maneira progressista foi a opção da ampla maioria da população (com a reeleição de Emmanuel Macron). A vitória de Joe Biden também foi um alento porque mostrou que Donald Trump não foi bem aceito pela sociedade americana. Vamos ver no Brasil agora. (Agência Estado)

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