Dia 10 de outubro de 1906. Rejeitadas pela comunidade judaica por terem se tornado prostitutas, e sem direito nem mesmo a um funeral tradicional de sua religião, as imigrantes polonesas fundam uma das primeiras associações filantrópicas feministas das quais se tem registro no Brasil: o Cemitério Israelita de Inhaúma, destino final das mulheres marginalizadas pela comunidade judaica.
Depois de mais de 100 anos de esquecimento, e de uma tentativa frustrada da Federação Israelita do Rio de Janeiro (Fierj) de tomar para si o espaço de Inhaúma, segregando-as mais uma vez, elas finalmente conquistaram seus direitos. Sem alarde, a Fierj está reformando os túmulos e colocando os nomes nas sepulturas do cemitério, que ficou abandonado por décadas.
– O que a Federação Israelita queria, a princípio, era colocar uma cerca-viva para isolar as prostitutas e enterrar seus mortos ali – conta Beatriz Kushnir, diretora do Arquivo Geral do Rio de Janeiro. – Com o tombamento do cemitério, no ano passado, conseguimos impedir que eles destinassem aquelas mulheres ao esquecimento. Finalmente reconheceram este cemitério e estão reformado o lugar, mas bem na surdina.
A razão pela qual a Federação Israelita do Rio de Janeiro (Fierj) decidiu tentar incorporar Inhaúma aos seus cemitérios é simples: as regras estritas para enterrar judeus.
De acordo com os preceitos da religião judaica, apenas uma pessoa pode ser enterrada por túmulo. Por problemas de espaço, a regra foi flexibilizada para apenas três por túmulo.
Mesmo assim, a rápida lotação dos cemitérios judeus é um dos grandes problemas enfrentados pela instituição.
– É verdade que consideramos a possibilidade de fazer novas sepulturas em Inhaúma. Há muito espaço vazio lá – admite o Presidente do Cemitério Comunal Israelita do Caju, Jayme Salim Salomão. – Mas nós nunca pensamos em fazer uma cerca para separar as prostitutas, como diz a Beatriz Kushnir. O que desejávamos, era separar uma parte do cemitério para criar um museu vivo.
Administrado pela Federação Israelita, o Cemitério de Inhaúma foi tombado logo que a comunidade judaica começou a considerar a possibilidade de enterrar seus mortos ali.
– Não acho que seria justo com a memória das prostitutas polonesas permitir que outras pessoas sejam enterradas aqui – alega Beatriz Kushnir. Autora do livro “Baile de Máscaras”, que conta a história das meretrizes judias. – Elas adquiriram aquele terreno por conta própria, após serem completamente abandonadas.
Apesar da suposta conquista, Jayme Salim Salomão acredita que o tombamento prejudica as próprias prostitutas.
– Tomamos a iniciativa de pintar as sepulturas e colocar nomes dos túmulos apagados, mas não podemos ir além – lamenta. – Como o local está tombado, não podemos fazer grandes reformas. Quem perde é o cemitério. Antes, aquele lugar estava destruído. Como fica bem ao lado da Favela do Alemão, as pessoas pulavam o muro para roubar ornamentos dos túmulos.
Segregadas quando chegaram ao Brasil, no final do século XIX, tanto por serem judias quanto por serem prostitutas, as polacas tiveram forte impacto sobre a cultura carioca. A famosa Vila Mimosa, área tradicional de meretrício da cidade, foi fundada por elas.
A história, no entanto, não é exclusividade do Rio de Janeiro. Casos semelhantes de prostitutas judias que se uniram para conseguir um enterro digno se repetem no mundo inteiro. A diferença, explica Beatriz Kushnir, é que as demais comunidades judaicas abraçaram a causa das prostitutas.
– A Federação Israelita do Rio de Janeiro é retrógrada e autoritária. Eles estão fazendo a restauração sem alarde justamente porque não aceitam as prostitutas como parte da comunidade – garante a historiadora. – Em São Paulo, por exemplo, a federação israelita fez comemorações quando incorporou o cemitério das prostitutas de lá. A comunidade judaica realmente compareceu à comemoração, visitou os túmulos. Tudo muito bonito. Aqui, tudo é feito às escuras. O Rio não abraçou a causa das polacas.
Para Beatriz, o tombamento não aconteceu apenas para impedir que outras pessoas fossem sepultadas no local, cujo último enterro foi no começo da década de 70.
– Aquele lugar representa a luta de mulheres que se uniram contra a opressão no começo do século passado, bem antes das primeiras manifestações feministas – ressalta a historiadora. – É uma história que não pode ser esquecida pela cidade.
Alternativa
Sem poder enterrar seus mortos em Inhaúma, a Federação Israelita do Rio de Janeiro já busca outras opções para driblar a superlotação dos seus cemitérios. Segundo Jayme Salim Salomão, um terreno anexo ao Cemitério do Caju deve ser incorporado em breve.
– Estamos arrumando os últimos detalhes para comprar este novo terreno, que deve resolver o problema da falta de espaço por algum tempo.
Entusiasta da reforma em Inhaúma, o dirigente da Fierj não crê que a comunidade judaica tenha alguma dívida com as polacas e não vê verdade nas acusações de Beatriz.
– Acho que não existe dívida com elas, como dizem. Será que não deveria ser o inverso, já que agora estamos ajudando-as?