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À sombra de Cassavetes

O ator francês Mathieu Amalric diz que ‘Turnê’, seu quarto longa como diretor, sobre o mundo do teatro burlesco, recebeu inspiração dos filmes do cineasta americano, grande referência do cinema independente dos anos 60 e 70

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Cineasta que, ainda muito cedo na profissão, tornou-se ator de sucesso, Mathieu Amalric diz que precisou “matar” o John Cassavetes (1929-1989), o ator que virou diretor, que existia dentro dele para dirigir Turnê, que chega ao circuito carioca nesta sexta-feira. Ganhador do prêmio de direção do Festival de Cannes de 2010, o filme sobre o relacionamento entre um ex-produtor de TV francês e coristas americanas em turnê pela França estava carregada de referências do realizador nova-iorquino, que muito contribuiu para o cinema independente dos anos 60 e 70.

Amalric não estava muito satisfeito com a forma com que sua releitura do diário de Sidonie Grabrielle Colette (1873-1959), escritora francesa cuja obra inspirou o recente Chéri, de Stephen Frears, se aproximava de A morte de um bookmaker chinês (1976). No filme de Cassavetes, Ben Gazzara interpreta o dono de uma boate de strip-tease de Los Angeles que, para quitar uma dívida com a máfia, é obrigado a eliminar um rival do grupo de criminosos.

– Três semanas antes de começar a filmar,  decidi que interpretaria Joachim, o protagonista, e encontrei uma forma de me livrar de Cassavetes dizendo par mim mesmo: não estamos fazendo um filme policial, mas contando a história de dois continentes que fantasiam um sobre o outro – argumentou Amalric, admirador da obra do autor de Gloria (1980), em entrevista ao JB, em Cannes. – Joachim viu muitos filmes americanos dos anos 70, adora os Estados Unidos. As vedetes com quem ele trabalha, por seu lado, sabem muita coisa sobre a carreira da cantora e dançarina Josephine Backer na Europa, os mitos sobre o Moulin Rouge e Paris. Um nutre uma grande admiração pelo outro.

O processo de negação da influência de Cassavetes também envolveu a absorção de algumas de suas referências. E a estas, Amalric acrescentou outras, retiradas de outros títulos que marcaram sua juventude, como A doce vida  (1960), de Federico Fellini (1920-1993), e O show deve continuar (1979), de Bob Fosse (1927-1987).  

– Quando Joachim tem algo importante para dizer às garotas, ele lembra que Cosmo Vittelli, o personagem de Gazzara, comunicava algo importante para as funcionárias da boate usando o microfone, e ele faz o mesmo. Joachim pensa que é Cosmo. Foi assim que me livrei de Cassavetes, integrando-o mais ainda ao meu filme – explicou o diretor, que ficou mundialmente conhecido depois que interpretou o vilão de 007 – Quantum of Solace (2008), o último longa da franquia James Bond. –  Abri um pouco mais a minha camisa, como o coreógrafo de Roy Scheider no filme de Fosse. Quis brincar um pouco com esses heróis meio decadentes, meio em crise, dos filmes com os quais me identifico. 

Turnê fala sobre um mundo colorido, sensual e divertido, no qual seu protagonista enfrenta uma crise de reputação. Ele é Joachim Zand (Amalric), um bem-sucedido produtor televisivo que deixou tudo para trás – o sucesso, os filhos, os amigos – para começar vida nova nos Estados Unidos. Volta de lá à frente de um grupo de dançarinas, estrelas do novo teatro burlesco americano, com o propósito de excursionar com elas pela França.

O passado, no entanto, continuará batendo à porta do sempre tenso e agitado produtor, tentando desviá-lo de seu grande sonho. A perda do teatro parisiense que abrigaria a performance final do grupo obriga Joachim a voltar a Paris, viagem que reabre velhas feridas relacionadas aos filhos do primeiro casamento, à amante, ao melhor amigo, aos inimigos profissionais. Enquanto isso, as coristas exibem humor, corpos fora de forma e figurinos cafona em espetáculos arrebatadores pelo interior da França.

As artistas do grupo são interpretadas por dançarinas de burlesco reais, que atendem pelos sugestivos nomes (artísticos) de Mimi Le Meaux (Miranda Colclasure), Kitten On The Keys (Suzanne Ramsey), e Evie Lovelle (Angela de Lorenzo). Amalric, que foi assistente de direção de Louis Malle em Adeus, meninos (1987), antes de investir mais seriamente na carreira de ator, encorajado por Arnaud Deplechin (“foi ele que me inventou como ator”, diz), afirma que Turnê foi alimentado “pela liberdade física e criativa dessas profissionais”. 

– O trabalho que elas fazem, e que foi criado especialmente para o filme, diz muito sobre a personalidade dessas mulheres maravilhosas. Fiquei chocado com a inteligência, o humor, a generosidade e a coragem física com que elas expõem seus corpos diante do público. Essas dançarinas de burlesco são a melhor resposta para esta doença que contamina o mundo de hoje, que dita que  devemos ter corpos perfeitos, mesmo quando reparados por photoshops – acusou o realizador de 45 anos. –  O mais estranho deste fenômeno são as revistas femininas, feitas por mulheres, que vendem esta imagem estúpida da mulher de corpo perfeito. Meu filme é um jeito bem-humorado de ser político nesta área do comportamento humano. Mostrar o corpo é mais contagioso e mais eficaz do que fazer discurso.

Joachim Zand tem um pé em A morte de um bookmaker chinês, mas circula por entre cenários e personagens que parecem ter saído de um filme de Fellini. Amalric não esconde que seu personagem tem um pouco da personalidade angustiada e sombria de Marcello Rubini, o protagonista de A doce vida (1960), vivido por Marcello Mastroianni:

– Todo mundo associa Fellini a alegria e extravagância, mas seus filmes sempre têm algo de sombrio, triste e desesperado, como o Marcello de A doce vida. Do Fellini, eu trouxe para o filme essa melancolia europeia. Joachim vive cercado pela energia das garotas à sua volta, mas ele é um bagaço, é puro Mastroianni. Ele precisa dessa energia para sobreviver.