O terceiro movimento na carreira de Marquinhos
Uma conversa franca com o ala que deixou o São Paulo para jogar no Biguá, no Uruguai
Se fizermos uma lista com os maiores jogadores brasileiros nos últimos 10 anos, um nome com certeza aparecerá: Marcus Vinicius Vieira de Souza, ou simplesmente Marquinhos. Seis vezes campeão no NBB, duas vezes campeão de BCLA, campeão panamericano em 2007, e que agora encara um novo desafio pelo clube uruguaio Biguá. Falamos deste novo desafio, do São Paulo, Flamengo e um pouco de seleção.
NAS QUADRAS: Tudo bem, Marquinhos?
MARQUINHOS: Tudo bem, prazer enorme estar falando aqui com você, falando de basquete, falando da minha carreira. Espero que seja um papo legal.
O bom de conversar com você é que não falta assunto. Então vamos começar pelo momento que você está agora. Na última temporada do NBB, jogando pelo São Paulo, você realizou um playoff maravilhoso e, nas finais, ficou por um jogo de conseguir mais um campeonato. Para surpresa de muita gente, você assinou com o Clube Biguá, da Liga Uruguai. Como foi essa aproximação com os uruguaios? Como está sendo encarar esse desafio?
Vou começar respondendo o que você falou do São Paulo. Realmente, foi um playoff muito legal, ficamos a um jogo de sermos campeões e sem precisar de um complicado jogo 5 dentro de Franca. Jogar lá é muito difícil. A verdade é que um erro meu no jogo 3 foi crucial. Se fôssemos com um jogo de frente para jogar em Franca dois jogos, a chance era muito maior. Mas foi legal nos playoffs, por quê? Porque eu vim de uma temporada de lesão. No começo da temporada operei o joelho devido a uma lesão de cartilagem. Por conta desta lesão joguei o Mundial no sacrifício. A recuperação era de quatro a seis meses. Acabei voltando um pouquinho antes de quatro meses, apressando pra poder jogar o Mundial, que era um grande sonho de ser bicampeão mundial, com a camiseta que é do meu time de coração que é o São Paulo, um projeto maravilhoso. Foi o primeiro título com São Paulo, eu estava lá. Saí do Flamengo multicampeão para um time que ainda era uma incerteza, e acabou ficando no top 3 do Brasil. Foi legal demais e, como falei, bateu na trava ali. Merecia muito, mas Franca também merecia porque fez uma campanha irretocável, tinha grandes jogadores, né?
Quanto ao Biguá, a verdade é que meio que me pegou com surpresa. O Biguá vinha naquele namoro uns dois meses, conversando com um empresário. Eu tinha algumas incertezas, e o que acabou pesando para mim foram duas coisas: primeiro, o atual momento do basquete brasileiro, essa briga CBB, NBB. Tentei escutar os dois lados, mas vi com muitas incertezas, e nesse meio tempo apareceu essa proposta do Biguá. Havia outras ofertas aqui do Brasil. Então eu sentei com a minha esposa, botei na balança e, mais uma vez, mais uma temporada, eu me permiti viver uma coisa diferente: conhecer o basquete uruguaio, que financeiramente está num momento muito legal. Esportivamente também com grandes atletas estrangeiros, o que faz o campeonato crescer. Como você falou recentemente, o São Paulo derrotou o Biguá quando eu estava nesse time. Acho que isso deve ter pesado para eles terem me contratado. Outra questão que pesou foi o lance da Liga Uruguaia não ter viagem - o campeonato deles é jogado só em Montevideo, então são menos jogos. É o que preciso agora nessa reta final de carreira: ficar em lugar tranquilo, seguro, que ainda me permite jogar em alto nível.
Vamos falar da Liga Uruguaia. Está havendo uma mudança no basquete uruguaio. A Liga Argentina tem problemas por conta da situação econômica do país, e o Brasil tem a questão entre a CBB e LNB. Shaq Johnson, que era um cara que estava com um nome muito quente aqui no mercado brasileiro, fechou com o Peñarol, então você tem Peñarol, Biguá, o Hebraica e o Nacional. Ou seja, é uma Liga que está se tornando interessante do ponto de vista de organização e esportivo. Uma das motivações para a mudança foi uma certa curiosidade para ver as mudanças e poder participar de uma coisa nova, um movimento novo, um público novo?
É exatamente isso que me chamou a atenção. O fato novo agora na minha reta final de carreira é o interesse de um time estrangeiro que tem ambição de ganhar o campeonato nacional. E botou toda a expectativa para eu tentar capitanear o time, chegar lá na final, ganhar o campeonato, brigar pela Sul-Americana. Falei com o presidente do time duas vezes, os jogadores do time ligaram para mim, o técnico, o GM. Foi decisivo este carinho, esse acolhimento que todos passaram para mim, a confiança, junto com a cidade, que é muito legal. Segura, bonita, parece uma cidade europeia, mais esse lance de não ter que viajar, jogar, e dormir todas as noites na sua casa, um campeonato espaçado, com poucos jogos, acho que tudo isso me chamou a atenção e me fez aceitar o convite.
E vocês ainda não estão na Sul-Americana?
Não, eles já falaram que vão jogar na Sul-Americana.
A BCLA (seria como a Libertadores do basquete Sul-Americano) ficou com o Nacional e a Hebraica, né? Quem sabe você faz uma visitinha por aqui. Não sabemos quais serão os times brasileiros, vamos falar mais adiante.
Muita incógnita, não é?
Vamos falar de coisa boa antes da começar a falar de coisas chatas. Vou tentar falar isso com cuidado porque há pessoas com ouvidos sensíveis. Você é muito identificado com o Flamengo, fez parte de uma geração supervitoriosa pelo Flamengo, mas existe uma coisa chamada trabalho autoral, um trabalho mais emotivo, mais do coração. Estive na final da BCLA aqui no Rio, entre o São Paulo e o Biguá, já vi alguns campeonatos seus, assisti à vitória no NBB, quando o Flamengo ganhou em 2019 foi uma explosão, aquela virada maravilhosa contra o Instituto Cordoba, em 2020, o último jogo antes da pandemia. Mas naquela vitória do São Paulo sobre o Biguá, você estava numa felicidade impressionante. Chegava a ser quase uma felicidade infantil, foi muito legal de se ver. Agora, depois da saída, dá para quantificar o quão importante foi esse projeto do São Paulo para você?
Bem, logo que o São Paulo subiu para Liga Ouro, eu tinha acabado de renovar meu contrato com o Flamengo por mais dois anos. Então eu já tinha o convite lá atrás, sou muito amigo do Rossi, que é o cara que era o braço direito do São Paulo (agora não está mais na frente do projeto), nas contratações. Sempre fui amigo dos Mortari, o Bruno Mortari, o Claudio Mortari. Mas ainda tinha vínculo com o Flamengo, e falei que só ia conversar com eles quando o vínculo acabasse. Quando fomos campeões em cima do São Paulo, no finalzinho da pandemia, estava aquela briga com o Flamengo porque eu queria ser valorizado, e fui um dos jogadores menos valorizados no processo da pandemia. Fui um dos jogadores que tiveram o salário descontado bruscamente, os outros jogadores tiveram o salário cortado por 22%, eu tive 46% de salário. Falei que queria ser atribuído porque estava acreditando que ia voltar ao normal, mas não vi toda essa transparência de algumas pessoas. Acabei optando pelo São Paulo, que tinha um projeto pronto para ser campeão, acreditei muito porque quando eles falaram da montagem do time, tinha possibilidade do Bruno Caboclo vir também. Acreditei muito e acho que o lado torcedor falou muito forte. Porque eu sou São Paulino daquele São Paulino de ir no Morumbi, eu e meu irmão saíamos da faculdade, faltávamos algumas aulas, íamos para o Morumbi, ele viu o semifinal de Libertadores, meu irmão dirigindo a bizinha [N.R. uma moto antiga] que ele tinha para cortar trânsito em São Paulo. Até demos carona para um cara de dois metros, todo encolhido na bizinha. Vimos o São Paulo ganhar do time mexicano, eu vi aquele título. Esse lado torcedor falou muito alto. Falaram que estava saindo de um time multicampeão para um time que acabou de ser campeão do seu time. Todo mundo viu como o São Paulo cresceu em dois anos, como São Paulo brigou de frente a frente com Franca, que era o time a ser batido, despachou o Flamengo com 3 a 0, onde ninguém acreditava, foi campeão do BCLA, onde o campeonato estava todo, vamos dizer, moldado para o Flamengo ser campeão em casa, fomos campeões invictos desse campeonato. Então, valeu muito a pena, e quando você diz, "eu vi um Marquinho como criança chorando, abraçando o presidente, abraçando as pessoas, muito feliz", porque foi um mix de sentimentos que juntou o time de coração, ser campeão na cidade, tudo o que aconteceu para não renovar com o Flamengo. Juntou tudo isso e eu falei, cara, está realmente acontecendo. Então, acho que foi difícil de conter a emoção por causa de tudo isso.
Até as derrotas do São Paulo foram marcantes: temos que lembrar o Super 8, que o Flamengo acabou ganhando, seu amigo Olivinha foi MVP que ganhou, não, perdão, isso foi no ano anterior de você chegar. Houve uma derrota para o Flamengo aqui no Rio, no Super 8, que você e Bennett acabaram com o jogo, foi uma coisa maravilhosa, e o NBB do ano passado, a famosa jogada do coelho que até hoje é estranha.
A jogada do coelho? Ah, sim, sim, o da Franca?
É isso.
Ah, sim. Acho que essas derrotas só foram jogar gasolina no fogo, só foi combustível a mais, porque assim, muitos dos jogadores ali não teriam ganhado o Super 8, o Paulista, o NBB, muito menos BCLAA. Então, tinha que ver como eram nossos treinos. O nível de competição era altíssimo entre a gente.
A gente treinava muito coletivo e acho que era um time totalmente diferente dos times de jogada, era muito mais talento, muito mais momento de entender o que está acontecendo e acho que isso acabou surpreendendo a muitas pessoas.
Esse jogo do Super 8 me marcou muito, porque vocês ficaram por um fio de cabelo, foi aquela jogada do Betinho no final que foi assim, por um fio de cabelo ali.
Na verdade, foi o rebote que o Tulio pegou, não foi? E a gente recuperou, chegou a estar perdendo creio que de 13 pontos, corremos muito e pouca gente se lembra, é muito difícil quando você fala que ficou por um fio. O São Paulo sempre jogou com muitas lesões. Vou dar um exemplo nessa série que foi marcada pelo Coelho: no primeiro jogo, não jogamos com o Tyrone que estava com febre de 40 graus. Foi eu jogando de pivô, acabou com o jogo de pivô e foi um jogo pau a pau, ganhamos no final. Aí volta para o Morumbi, ganhamos o segundo jogo, acabamos perdendo o terceiro e aí veio um emblemático jogo 4.
No Super 8 também jogamos sem o Tyrone, que estava com lesão de tendão de Aquiles. Aquele jogo que o time estava perdendo, ganhando o jogo todo, aconteceu todo aquele fuzuê do Flamengo, com falta técnica de qualificante no Bruno. Estávamos ganhando o jogo de quase 20 pontos e aí no terceiro e quarto aconteceu todo aquele auê e o jogo mudou. O que tenho a dizer é que todas essas coisas só serviram de motivação para o São Paulo conseguir os títulos.
E parabéns porque realmente foi um trabalho fascinante. O São Paulo trouxe para o basquete de novo nomes como Georginho, Lucas Mariano, e já foi logo campeão paulista no seu primeiro ano. É um bom trabalho porque tem gente do ramo?
E é muito doido, já que dos últimos quatro NBB, três MVP saíram do São Paulo: Georginho, Lucas Mariano e Caboclo. Veja o exemplo do Georginho. O São Paulo recuperou o Georginho, que estava no Paulistano. Lucas Mariano reencontrou aquele amor pelo jogo, foi para Franca, depois teve duas temporadas brilhantes. Caboclo acabou de ser campeão alemão e está jogando muito bem na seleção. Então, acho que indiretamente o São Paulo contribuiu muito para o basquete brasileiro.
Vamos falar de dois dos seus companheiros recentes de campeonatos, o Yago, pelo Flamengo, e agora o Caboclo no São Paulo, que estão na Seleção Brasileira. O Brasil vai começar agora a participação na Copa do Mundo. São dois jogadores antagônicos porque o armador Yago é muito rápido, e o Caboclo, um talento absurdo. Como foi conviver com eles no período do Flamengo e no período do São Paulo, e o que você projeta para essa Seleção Brasileira para o Mundial?
Vamos lá. São dois jogadores totalmente diferentes. O Yago é um cara que acredita muito no "eu sou capaz, eu vou fazer, eu vou fazer acontecer, não interessa o meu tamanho, eu vou lá, vou brigar com um cara de dois metros, que marca, que dá toco, não interessa, eu vou fazer e vai acontecer". E acho que todos esses últimos anos dele mostram isso. De um cara que quer mais, que quer vencer na carreira, não aceita limite, e ele vem fazendo muito isso, muito bonito, e acho que acompanha toda essa história. Joguei com o Yago no ano em que ganhamos tudo [N.R.: foi o time do Flamengo de 2021]. Vejo a fantástica evolução dele, ele brilhando na Europa, clico todos os posts dele, curto porque é muito legal. Ele jogando na Summer League pelo Chicago foi legal demais, vi o jogo, um menino feliz, que joga um basquete alegre e passando por cima de todos os limites.
Então eu acho que essa dupla Yago e Caboclo tem dado muito certo, acho que eles se conectam muito bem. E falando do Caboclo, é o que você falou: o cara é talento puro. Uma envergadura absurda. Ele é um cara que pode jogar de três, de quatro, de cinco. Ele tem jogado muito de cinco e tem se destacado porque ele está forte fisicamente. O basquete mundial não tem mais aqueles caras fortões, tipo Marc Gasol, dos irmãos Gasol, (Rudy) Gobert. Assim, ele consegue marcar um pouco pela envergadura, pelo perfil atlético dele. No São Paulo, eu ajudei muito nessa parte de cabeça, de ser mais profissional, que é o que faltava para ele. Acho que esse último ano na Europa ele mostrou muito isso.
Espero que ele, Yago e outros jogadores façam uma Copa do Mundo de altíssimo nível porque, na minha opinião, muita gente pode até me criticar, mas para mim o céu é o limite para a seleção. O Brasil está muito bem coberto em todas as posições. No basquete mundial, você tem que estar no nível top 100% de todo o jogo. Eu acho que essa seleção com Gustavinho de técnico, com Elinho de assistente, estamos muito bem representados, e não seria nada anormal se eles chegassem a disputar uma medalha. Então, minha torcida é essa, e espero que essa dupla continue fazendo bonito na seleção.
Você comentou na primeira resposta em relação a essa confusão entre a CBB e o NBB. Se para quem acompanha e cobre é chato, imagina para vocês que estão envolvidos nessa história. Até que ponto a ideia de ir para o Uruguai foi falar "cara, olha só, resolva o que você tiver que resolver aí, eu vou cuidar da minha vida porque não tenho mais paciência". Chegou a esse ponto?
Vou falar mais ou menos porque escutei os dois lados. Eu tive uma proposta do Pinheiros, conversei com o presidente, que é o Rodrigo Montouri, presidente da Liga. Eu estava quase para acertar com Pinheiros, mas algumas questões familiares me disputavam no Rio, eu no São Paulo, essa ponte aérea quando eu estava no Morumbi foi um pouco difícil, então acabei optando por não ir.
E aí, depois, apareceu essa proposta do Biguá, eu acabei aceitando. Recentemente tive uma conversa também com um time que vai jogar o campeonato da CBB , e eles me explicaram o que está acontecendo. Realmente entendo os dois lados da moeda. Só que eu tinha que me decidir o quanto antes. Não tenho mais 30 anos. Pode ser que eu jogue minha última temporada agora no Uruguai, pode ser que jogue mais uma ou duas. Depende de como eu estou fisicamente, como o basquete vem me completando ainda. Então, no meu momento eu não podia esperar para saber o que ia acontecer. Espero que as duas partes façam o basquete brasileiro crescer. Essa é a minha única torcida, entendeu? Eu sinceramente não quero acreditar que o CBB veio para prejudicar o NBB, e sim para ser uma ferramenta a mais para que os jogadores tenham um salário melhor, para o basquete se expandir e melhorar. Eu comentava que o pessoal do NBB fez um trabalho muito legal, que foi a liga de desenvolvimento. Saíram daí jogadores como Raulzinho, Fischer, Felício e Caboclo. Essa seleção inteira é formada por esses caras!
É legal demais tudo o que o NBB fez nesse período que a CBB ficou off do basquete, vamos dizer assim, financeiramente. Espero que sinceramente eles não venham para atrapalhar todo esse trabalho que foi feito pelo NBB.
Que a gente caminhe de um outro jeito, que seja uma ferramenta a mais, um campeonato a mais para muitos jogadores que param ali no final da LDB, que não têm mais clube, que possam jogar nesse campeonato do CBB, que possam continuar essa trajetória. Porque a gente sabe como fazer basquete no Brasil é difícil. Eu espero que esse vento agora sopre uma direção que seja a mudança para o bem do basquete brasileiro.