Victoria Saramago*, Jornal do Brasil
RIO - Vou matar esse desgraçado . A frase de abertura de Jogo de damas já fornece uma ideia bastante clara do que esperar deste novo romance de Myriam Campello. De fato, uma linguagem fria, direta e de poucas vírgulas dá o tom de um thriller que se promete todo voltado para o futuro, fechado como um jogo de xadrez. A impressão que se tem é a de que os eventos passados, quando ocuparem qualquer espaço na narrativa, estarão inevitavelmente condicionados ao próximo passo.
De fato, o argumento central da trama justifica o clima de suspense: após ter a filha de quatro anos trucidada por um pitbull na pracinha onde brincava, a promotora Júlia quer vingança. Quer matar o desgraçado dono do cão, e não há, a princípio, força capaz de impedi-la de revidar esse ataque gratuito do destino . Se as leis frouxas de um sistema judicial falho não garantem a vingança, então a vingança há de ser feita por suas próprias mãos. Trata-se de uma lei muito mais primordial esta que está em questão. É a lei do instinto, a lei do sangue.
Nesse cenário, e tendo como parte integrante de sua estratégia de ação uma temporada num hotel da região serrana, a protagonista, isolada de uma existência já insuportável na cidade do Rio, vem a conhecer Helena, uma hóspede misteriosa e atraente. Da proximidade das duas, bem como dos capítulos dedicados ao passado da moça, tramas paralelas surgem e se entrelaçam à narrativa primeira.
Tanto nos familiarizamos com os anos vividos por Helena em orfanatos cruéis e com sua posterior mudança para a casa de uma tia cheia de amor, dinheiro e conflitos familiares, quanto acompanhamos o desenrolar de sua relação com Júlia, narrado com delicadeza e consistência. A história ganha assim outro tom, outras implicações, e talvez seja precisamente aí que comecem seus problemas.
Se tantos fios narrativos jogam o motivo da vingança para uma posição relativamente periférica, a opção por uma prosa mais descritiva, bem como as paisagens exuberantes e as noites regadas a vinho em frente à lareira, tornam o enredo mais lento e menos claustrofóbico. É como se um thriller policial, um romance de formação e uma história de amor se desenvolvessem no mesmo livro. Ainda que todos os fios eventualmente confluam para um caminho comum, sua coexistência ao longo da trama se mostra pouco integrada e, por vezes, incompatível.
E isso não significa que os eventos narrados não se justifiquem na arquitetura geral do enredo, mas sim que há climas, ritmos e expectativas muito diversos, ou seja, há pactos de leitura distintos convivendo fragilmente. De um lado, a bela temporada na serra; de outro, o pesadelo rondando o iminente assassinato do dono do pitbull. No primeiro caso, um jogo de damas cheio de pequenas nuances; no segundo, um xadrez cerrado, sem espaço para digressões. Ao leitor, resta se equilibrar entre a longa espera pelo suspense prometido nas primeiras páginas e o interesse pela trajetória de Helena e seus dias na serra com Júlia.
Se nos afastamos desse primeiro obstáculo, entretanto, novos e interessantes aspectos vêm à tona. Campello tem uma inegável capacidade de construir cenas vívidas e de dosar com cuidado cada ato, cada olhar de seus personagens. Ao mesmo tempo, e sobretudo nos capítulos focados em Júlia, desafia aquelas famosas considerações, tecidas por Percy Lubbock ainda nos anos 20 do século passado e recorrentemente lembradas desde então, de que o que se passa com os personagens não deve ser contato pelo narrador, e sim mostrado através de falas, ações, eventos etc. Pois Júlia nos descreve seus sentimentos e reflexões com uma firmeza notável: seus motivos para planejar o assassinato estão lá, tão claros e irrefutáveis quanto seus motivos para titubear, ou quanto os motivos dos outros para, muitas vezes em vão, tentar convencê-la a voltar atrás.
Pesando todos esses fatores, Jogo de damas se revela uma obra intrigante, apesar dos pontos problemáticos. A perfeita dor só é igual à perfeita bala , afirma a protagonista. Entr