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Sempre aos domingos: Aí vieram dois milhões de mulheres e o cara deu uma fraquejada

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Um dos fenômenos mais interessantes dessas eleições não partiu de campanha eleitoral nenhuma ou de qualquer movimento pró-candidaturas. A novidade desta corrida às urnas veio esta semana sob a forma de uma anticampanha. Ou melhor, de uma campanha contra uma ideologia. Começou em 30 de agosto, quando um grupo de mulheres criou a página “Mulheres unidas contra Bolsonaro”. Já ultrapassaram dois milhões de integrantes na base de 10 mil novas a cada dia. Diz a descrição no Facebook: “Destinado à união das mulheres de todo o Brasil contra o avanço e fortalecimento do machismo, misoginia e outros tipos de preconceitos representados pelo candidatoJair Bolsonaroe seus eleitores”. Também na semana passada, foi a vez de um grupo de LGBT+ criar a página “LGBTs contra Bolsonaro”, que na quinta já tinha mais de 200 mil inscritos. Diz a descrição: “Grupo destinado a todos os LGBTI+ e todos que apoiam nossas causas na luta contra o candidato de extrema-direita que já disse preferir ter um filho morto a um homossexual”.

Em nosso universo de 147,3 milhões de eleitores, as mulheres, que representam 52,5% desse total, são a maior frente de resistência ao sujeito: apenas 13% votariam nele, enquanto 43% dizem que nunca o fariam. Curiosamente, os grupos de mulheres e LGBTs do Facebook não são homogêneos. Cada um posta propostas de seus candidatos e o repúdio interminável ao pensamento e lógicas do ex-militar. Na quinta-feira, o grupo de mulheres publicou uma carta em que dizia que “otratamento desrespeitoso dirigido às mulheres, aos negros, indígenas, homossexuais, o culto à violência, a agressão contra adversários, a defesa da tortura e de torturadores, constituem manifestações que devem ser combatidas por aqueles que acreditam nos princípios civilizatórios que possibilitam a existência de uma sociedade democrática e plural”. O mesmo se espalha pelos posts LGBT.

Ou seja, a resistência não é nem um pouco ao projeto de governo de Bolsonaro, mas toda a ideologia que ele defende e representa e que se dissemina entre seus eleitores. O professor, pesquisador e escritor Juremir Machado escreveu no Correio do Povo um artigo brilhante explicando essa ideologia, reproduzido no portal da revista “Fórum”:

“Não, Jair Bolsonaro não é um candidato como outro qualquer. É pior. Ele é um imaginário, uma mentalidade, uma visão de mundo. O seu método de leitura do que acontece na vida é a simplificação. Torna o complexo falsamente simples por meio de uma redução a zero dos fatores que adensam qualquer situação... Bolsonaro encarna o pensamento do homem medíocre, o homem mediano que não assimila explicações baseadas em causas múltiplas. Se há miséria, a culpa é da preguiça dos miseráveis. Se há crime, a culpa é sempre da má índole. Se há manifestações, é por falta de ordem. A sua filosofia por excelência é o preconceito em tom de indignação moral, moralista. A sua solução ideal para os conflitos é a repressão, a cadeia, o cassetete. Bolsonaro corporifica o imaginário do macho branco autoritário que odeia o politicamente correto e denuncia uma suposta dominação do mundo pelos homossexuais. É o cara que, com pretensa convicção amparada em evidências jamais demonstradas, diz: – Não se pode mais ser homem neste país. Vamos ser todos gays”.

A cientista social e antropóloga Rosana Pinheiro-Machado estuda há algum tempo o imaginário das populações periféricas a respeito do ideário de Bolsonaro. Em artigo ao portal “The Intercept”, ela complementa essa lógica descrita por Machado – um pensamento típico de classe média – ao destrinchar porque muitos marginalizados também apoiam o opressor: “Construir-se como ‘honesto’ é uma saga radical de sobrevivência. Não é nada excepcional que muitos sujeitos das periferias reproduzam a ideologia antipovo para serem aceitos socialmente. Eles precisam culpar o bandido para justificar as suas próprias escolhas... Antes de ficar reproduzindo bordões preconceituosos acerca dos “pobres de direita”, deveríamos fazer o esforço de colocar as coisas em perspectiva e lembrar que, na maioria das vezes, o amparo só vem da religião, da família e das ações coletivas e movimentos sociais, raramente do Estado. Não se pode esperar que brotem almas democráticas e contestadoras de pessoas cujo contexto, desde o espancamento que recebeu do pai até a lição que levou da polícia, é marcado pela violência”.

Ou seja, o eleitor de Bolsonaro é um sujeito que se deixou influenciar pelo discurso de ódio, violência e preconceito anticivilizatório. E isso tem um preço que os grupos formados no Facebook e que começam a ganhar as ruas pretendem contornar e a ele resistir. Em entrevista ao portal “Nexo”, Christian Dunker, psicanalista e professor-titular do Instituto de Psicologia da USP analisa a cabeça do sujeito que esfaqueou Bolsonaro e aponta o perigo real do discurso odioso:

“É preciso entender que um discurso é muito mais do que um conjunto de teses que alguém defende ou representa. Um discurso compreende os efeitos de reprodução e reverberação do que alguém diz autorizando, incitando ou por outro lado reprimindo ou deslocando afetos e disposições de ação... O que muitos chamam de discurso de ódio ou de polarização está caracterizado por isso: criação e acusação de inimigos, valorização de armas ou violência, uso de provocação e desqualificação, ataque contra instâncias de mediação. Este tipo de discurso incita efeitos que a psicanálise situa no campo do imaginário, caracterizado pelas paixões de ódio ou fascinação, assim como espelhamento e inversão simétrica. Isso é um perigo pois atrai contra si pessoas e atitudes que valorizam os mesmos meios de violência e agressividade, só que em sentido inverso, criando uma espécie de barril de pólvora”.