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A valorização das vozes articuladas

Festival de Brasília apresenta, pela primeira vez, maior número de mulheres diretoras

Fotos Humberto Araújo/divulgação -
A veterana atriz Ítala Nandi recebe o prêmio Leila Diniz, criado para reconhecer a importância das mulheres no cinema brasileiro
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O Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, o mais tradicional do país, chega a sua 51ª edição. Até o dia 23 de setembro o Cine Brasília serve de vitrine para as principais produções audiovisuais. Nesta edição, a hora é delas: a voz feminina ou de gênero não binário é maioria na competição pelo troféu Candango. Um acontecimento inédito desde a criação do evento, 52,4% das diretoras são mulheres ou se identificam desta forma. Sinal de um respiro inovador na seleção dos filmes.

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A veterana atriz Ítala Nandi recebe o prêmio Leila Diniz, criado para reconhecer a importância das mulheres no cinema brasileiro (Foto: Fotos Humberto Araújo/divulgação)

O festival que é o mais político do país e tem temas árduos e debates fervorosos traz novidades no seu formato, como as mostras Caleidoscópio e Onde estamos e para onde vamos, além da instituição do prêmio Leila Diniz, que contribuem para a criação de um espaço de competição alternativo para títulos reflexivos, provocadores e autorais. O diretor artístico Eduardo Valente reconhece essa multiplicidade de propostas e seu crescimento. “Se o trabalho do curador e do programador for feito com atenção, ele é fácil, entre aspas, porque na verdade o trabalho duro é feito pelos cineastas - porque eles é que tem que ter as ideias e criar os filmes. O curador tem que olhar o que chega a ele e reconhecer as potências. Então, acho que não fui nem eu e nem o festival que resolveu dar espaço para as mulheres nem, por exemplo, os negros. O que aconteceu foi que esses grupos se articularam. Criaram situações de fomentos, de realizações e agora os filmes estão chegando. Nossa capacidade é de olhar pra produção e ver. O curador tem que estar sensível para ver o que mudou e refletiu na tela. Quem está realmente lutando pra mudar é quem está fazendo os filmes”.

O fim de semana inicial comprova que a programação exibida em Brasília é das mais instigantes e lida com temas espinhosos do cotidiano, como a recente greve dos caminhoneiros (“Bloqueio”); as prisões de mulheres, durante a ditadura no Brasil (“Torre de donzelas”) e a abordagem de questões sobre identidade e gênero (que têm voz nos longas “Bixa travesty” e “Luna”). O foco da mostra Caleidoscópio é o cinema autoral e as questões por ele levantadas, a mostra Onde estamos e para onde vamos retrata questões como feminicídio, impunidade, jogadas políticas feitas no meio da noite e o mecanismo que domina os bastidores do poder favorecendo classes privilegiadas e massacrando as oportunidades dos menos favorecidos.

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Valente vê articulação entre as produções (Foto: Fotos Humberto Araújo/divulgação)

“A secretária de cultura, hoje, adota determinados princípios que se refletem nesse festival fortemente como a igualdade de gêneros, um olhar de um Brasil diverso, profundo, para as comunidades indígenas, afro-brasileiras. Isso é regra no Distrito Federal. Muito bonito ver na programação como uma política continuada de fomento resulta. Que a gente consiga preservar as conquistas de políticas públicas e os avanços conquistados em Brasília. O festival sempre refletiu o Brasil, sempre foi um espelho. Sofreu uma ditadura terrível e só foi interrompido por alguns anos por causa de uma ditadura militar. O festival tem 51 anos numa cidade que existe há 58, onde existe isso no Brasil?”, indaga Guilherme Reis, secretário de cultura, antes de entregar a medalha Paulo Emílio Salles Gomes, que em sua terceira edição homenageia Ismail Xavier e Walter Mello.

A novidade ficou por conta da criação da medalha Leila Diniz, figura tão decisiva no cinema e no país, que premia a atriz Ítala Nandi e a montadora Cristina Amaral. Isso mostra o quanto foi e segue importante a participação das mulheres no cinema. Ítala, que também participou do longa “Domingo”, exibido fora de competição, aproveitou para falar da sua luta com Leila pelos direitos iguais para mulheres e dos obstáculos que passou. A veterana atriz com seis décadas de carreira elogiou a oportunidade de trabalhar com novos diretores e fez um paralelo com diretores como Ruy Guerra e Joaquim Pedro de Andrade, que valorizavam muito o uso de planos-sequência.

A noite de abertura ainda teve a exibição do curta “Imaginário”, de Cristiano Burlan, que através de material de arquivo constrói uma paisagem de sons e imagens que dialogam assustadoramente com os dias atuais. Concluindo, houve a sessão de “Domingo”, de Clara Linhart e Fellipe Barbosa. Recentemente exibido no Festival de Veneza, a produção aborda o universo de uma família decadente e as questões sociais entre patrões e empregados no momento em que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva toma posse em Brasília, em 2003.

Brasília busca o fortalecimento do ambiente do mercado, numa das muitas frentes que o festival abraçou recentemente. Houve uma ampliação internacional, que conta com representantes de mais de 30 empresas de ponta. Oficinas, clínicas e master classes continuam. A 51ª edição traz workshops de fotografia com Affonso Beato (que trabalhou com Glauber Rocha e Pedro Almodóvar) e de assistência de direção com Hsu Chien Hsin (que tem mais de 50 longas em seu currículo com diversos diretores). Aaron Mendelsohn, professor de Los Angeles, trará dicas de roteiro. Pitchings abertos, com participação de público e de potenciais compradores de projetos audiovisuais, também acontecerão. Integrantes de comissões de festivais como os de Cannes, Roterdã, Berlim e Cartagena tomarão parte de atividades, como a exibição de filmes às vias de finalização.

* Assistente de direção e jornalista

Fotos Humberto Araújo/divulgação - Valente vê articulação entre as produções