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Os mercadores da fé: a política como pregação

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Qualquer que seja o resultado final das próximas eleições, você eleitor em algum momento dos próximos quatro anos, provavelmente vai se sentir traído ou enganado, Essa é a lição que depreendemos da história recente. Políticos eleitos, sistematicamente, por reiteradas vezes, mentiram em seus programas e venderam para seus eleitores um paraíso de virtudes, um reino de um mundo sem dor, pecado, custo, provações e desencantos. E, para a sorte das promessas vãs, na maioria das vezes, a decepção e a traição moldaram o relacionamento entre eleitos e eleitores, como podemos comprovar na deliciosa obra, recentemente lançada por Chico Otavio e Cristina Tardáguila, “Você Foi Enganado”. Intrínseca, 2018.
A política, enquanto processo de seleção de vontades, tem por foco o alcance do consentimento das massas para a seleção e execução de políticas públicas voltadas para determinados nichos da sociedade, maiorias consolidadas ou minorias agrupadas. Em tese, o voto é que define o processo de seleção de prioridades, envolvendo a escolha de critérios para a alocação de recursos públicos.
Esta dupla função da vontade popular deixou de ser uma forma de alcançar a virtude, em seu conceito filosófico clássico, e passou a ser a arte da promessa de sonhos, lócus do devaneio, espaço para a criação de utopias, verdadeira descrição de lugares que só existem nas promessas dos candidatos a cargos eletivos. Assim tem caminhado a humanidade desde a Grécia antiga, a Roma Consular ou ao populismo das democracias contemporâneas. Talvez seja esse o motivo para que pregadores, mercadores da fé, tenham tanto sucesso em campanhas políticas.
O Brasil de hoje não é diferente do universo descrito acima. O que estamos vivenciando é um grande surto de uma doença altamente contagiosa; um vírus com elevada taxa de reprodução, que, sorrateiramente, invade a mente e o coração de um amplo grupo de pessoas, tornando-as uma espécie de zumbi, morto-vivo, um alienista, despossuídas da capacidade de refletir e pensar. Legiões de admiradores e serviçais lançam-se em ataques furiosos quanto a tudo que não lhes é semelhante, exaltam ódio, fúria e fogo, cospem fel, bafejam rancor.
Como chegamos a esse estágio da história?
Primeiro, cabe ressaltar que a deterioração da vida política e econômica brasileira vem em um contínuo procedimento de fragmentação. O processo de formação e construção da democracia enquanto princípio universal, alicerçado na inspiração do iluminismo, nos valores da democracia liberal, no estado de direito democrático, nos capítulos forjados no respeito à dignidade humana e na valorização do capital e do trabalho, vem sendo torpedeado em décadas, vítima de abuso de gestos e atos dos três poderes da república.
De fato, a Constituição Federal de 1988 não foi devidamente incorporada à vida ou à realidade das práticas institucionais da chamada nova República.

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A gênese do ovo da serpente

Quando analisamos, em perspectiva histórica, os últimos 30 anos da constituição cidadã, percebemos que tal tempo foi próspero em assegurar direitos e promover inserção social, por meio da ampliação dos princípios de representação da vontade popular; no entanto também gerou uma série de situações de confronto entre princípios, valores e realidade adversa. O primeiro pode ser medido na virulência dos planos econômicos implementados nos anos oitenta, com congelamento de preços, confisco de poupança, intervenção forçada no domínio econômico e desequilíbrio estrutural nas contas públicas, terminando pela fragilização do conceito de equilíbrio fiscal e sustentabilidade do endividamento público.
Não por outro motivo que esse mundo de insensatez foi palco de tentativas frequentes de invasão de poderes e aviltamento dos preceitos republicanos, tais como as evidencias de compra de votos no parlamento para a introdução do instituto da reeleição e a inserção da prática rotineira da mesada generosa aos políticos da base aliada, a famigerada adoção do esquartejamento da administração pública pela prática da venda e cessão não onerosa de cargos, funções, controle de estatais e pedaços do orçamento federal para desfrute de grupos aliados, elementos incorporados à convivência entre os poderes executivo e legislativo.
Os mesmos desvios de caráter podem ser imputados aos avanços do Poder Judiciário, que incorporou, aos seus julgados, inovações e complacência alheias à codificação, criando um direito positivado baseado em presunções e escolhas pessoais de culpados, em muitos casos em fatos e atos alheios ao autos e em contradição com a lei. A ampliação da hermenêutica por juízes tem contribuído para a construção de um sistema de punição voltado para a segregação de supostos adversários e à eliminação de concorrentes de facções político-partidárias.
O processo judicial levado a cabo por mecanismos transversos ao bom direito, quando associado a continuas cenas de espetacularização de operações policiais, serviu de conteúdo gratuito para a construção de um verdadeiro “complexo de entretenimento midiático” responsável pela proliferação da imagem de transgressão como norma na política e à execração do processo eleitoral e dos políticos.
Essa mistura perversa de elementos criou a realidade em formação, em que a aventura encontra espaço e seu discurso produz o eco de renovação e ruptura por meio de murmúrios, falas desconexas, sem conteúdo, cuja mensagem de iconoclastia incorpora sinais e símbolos de autoritarismo e aversão à democracia e seus elementos.
O processo eleitoral em curso pode ser o maior teste já vivenciado pela frágil democracia brasileira. O avanço do discurso de “ desconstrução da política” é a forma mais sórdida de pregar a inversão dos preceitos democráticos , pois conclamam o eleitor a subordinar a própria democracia à opção por um estado de exceção, ou seja, o eleitor delega a um agente autoritário o poder para agir contra valores e princípios pétreos .
Por fim, gostaríamos de deixar a mensagem contida em uma obra de publicação recente, “Como Morrem as Democracias”, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt: “As democracias funcionam melhor - e sobrevivem por mais tempo -, onde as constituições são reforçadas por normas democráticas não escritas. Duas normas básicas preservaram os pesos e contrapesos na América, de forma que permitiu a tolerância mútua, ou o entendimento de que as partes concorrentes são rivais legítimos e a tolerância, ou a ideia de que os políticos devem exercer moderação ao empregar suas prerrogativas institucionais”. Essas duas normas sustentaram a democracia americana durante a maior parte do tempo.
Outro ponto importante destacado na citada obra repousa na tese de que os poderes da república devem ser dotados de certas doses de reserva institucional, situação em que, nenhum poder tende a levar ao limite suas prerrogativas constitucionais, para não criar situações de tensão passíveis de fracionamento nas relações permanentes, com destaque para o uso do processo de impeachment como arma política e para a usurpação das prerrogativas de um poder sobre o outro, ou seja, a situação de judicialização do processo legislativo.