O Outro Lado da Moeda

Por Gilberto Menezes Côrtes

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O OUTRO LADO DA MOEDA

FED e Copom têm uma certeza: das incertezas

Publicado em 23/05/2024 às 13:52

Alterado em 23/05/2024 às 13:52

A íntegra da reunião do Federal Reserve, o Banco Central dos Estados Unidos, mostrou que lá como aqui, as autoridades monetárias só têm uma certeza: o cenário econômico está tão rodeado de incertezas, geopolíticas e climáticas, sobretudo, que influem na cadeia produtiva global, que a potência da política monetária – tão mais eficaz num ambiente de equilíbrio fiscal – perde sua eficácia, trazendo mais incertezas aos reguladores da inflação para a sua meta.

A ata da reunião do Federal Open Market Committee (FOMC) em maio mostrou que os seus membros manterão os juros elevados por mais tempo até que a inflação convirja para o objetivo de 2,0% ao ano. Essa sinalização decorreu dos dados econômicos do 1º trimestre que mostraram uma inflação pressionada e acima do esperado, um mercado de trabalho ainda apertado e uma demanda interna robusta. A avaliação do comitê é de que a política monetária é restritiva e apropriada para o cenário econômico e seus riscos. [Os dados de abril e maio mostram desaceleração, mas é cedo para dizer que o cenário mudou].

Entretanto, muitos participantes da reunião expressaram suas incertezas quanto à política de juros do FED. Alguns estão incertos quanto à potência da política monetária, que pode ter diminuído. Outros afirmaram que a taxa neutra de juros (deduzida a inflação) pode ter se elevado. Finalmente, alguns comentaram que o crescimento potencial pode ser menor. De qualquer forma a diretriz do comitê é manter o nível atual dos juros enquanto a inflação não der sinais consistentes de desaceleração.

Vários diretores também afirmaram que os juros podem ser elevados se os riscos para a inflação se materializarem. Entre os riscos de alta da inflação foram citados a possibilidade de eventos geopolíticos provocarem problemas nos canais de oferta, elevação dos custos de fretes e encarecimento das commodities. Outro risco altista é de as condições financeiras não forem suficientemente restritivas para a contenção da demanda e inflação.

No Brasil, Copom espelha o FOMC

Criado em 1999, quando o país adotou o sistema de metas da inflação, após o fim da âncora cambial, o Comitê de Política Monetária do Banco Central, composto pelos oito diretores do BC e mais o presidente, se espelhou no FOMC, que tem como membros representantes dos diversos bancos regionais da Reserva Federal (12, sendo oito fixos e quatro com mandatos rotativos).

Teoricamente, o Copom utiliza indicadores macroeconômicos próprios e os complementa com as projeções semanais dos agentes econômicos auscultados pela Pesquisa Focus do Banco Central (encerrada às sextas-feiras e divulgada às segundas-feiras). Diante das incertezas que surgem no intervalo de 45 dias entre as reuniões, os membros do Copom passaram a fazer este ano encontros em “petit comitê” com os economistas-chefes de instituições financeiras, consultorias e institutos de economia.

Hesitação do FED amplia a do Copom

Mas, a verdade é que as incertezas causadas por surpresas domésticas – como o desastre climático do Rio Grande do Sul – perdem em importância para as incertezas do cenário global da economia. Toda a hesitação do Banco Central quanto ao futuro da política monetária no Brasil foi causada, majoritariamente, pela mudança do plano de voo do FED.

Os juros americanos, que estavam na faixa de 5,25%-5,50% ao ano, deveriam cair a partir de maio, na base de 0,25 ponto por reunião, acumulando queda de 0,75% em 2024. Mas as incertezas geopolíticas alteraram os planos de voo, recomendando mais cautela aos membros do FED pela resistência da inflação. Isso levou os analistas econômicos do Brasil a elevar a trajetória da Selic. No Brasil tivemos estragos climáticos recordes no RS; nos EUA, os estragos causados pelo recorde de tornados no meio-Oeste não foram menores.

Liberalismo afeta a inflação

No governo Bolsonaro, o excesso de liberalismo pregado pelo então ministro da Economia, Paulo Guedes, com a pregação digna dos tempos do “laissez faire, laissez passer e laissez aller”, que norteou a ação de duas pastas, como o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), comandada pela ministra Tereza Cristina, e o do Meio Ambiente, na gestão de Ricardo Salles, expresso pela retirada dos controles reguladores do Estado sobre as atividades privadas, produziu uma série de aberrações.

No meio-ambiente, a desmobilização do Ibama e da Polícia Federal na fiscalização e combate aos desmatadores, grileiros de terras indígenas e reservas florestais, produziu recordes de desmatamento, agravados pela abertura incentivada ao garimpo em terras indígenas, cujo passivo ambiental com a contaminação de mercúrio para a separação do ouro, compromete a saúde das aldeias indígenas e das populações ribeirinhas.

Mas o pior do liberalismo foi logo sentido, de forma dolorosa, pela população brasileira em plena pandemia da Covid-19, em 2020, com a desmobilização dos sistemas de estoques reguladores de produtos agrícolas já no primeiro ano da gestão Bolsonaro. Em setembro de 2020, o país, que é o maior produtos e exportador de soja, levou o liberalismo ao extremo e exportou todos os estoques de soja em grão. Sem soja para esmagar e fazer óleo, as garrafas Pet de 900 ml subiram mais de 100% e ainda sumiram nos supermercados, porque o ministério de Tereza Cristina dispensou o A de Abastecimento de suas funções e se limitou a ser MAP. Vergonhosamente, o Brasil teve de importar soja em grão em setembro-outubro de 2020 para extrair óleo!

País não aprende com o arroz

No caso do arroz, produto que sempre teve estoques reguladores da Conab, por formar, ao lado do feijão, a base da alimentação do brasileiro, o governo Bolsonaro abdicou desta função reguladora do mercado e o Brasil teve de importar arroz depois que os preços subiram mais de 77% em setembro de 2020. O resultado final foi que, mesmo com a economia travada pela redução da circulação e do consumo, devido à Covid-19, a inflação fechou o ano em 4,52%, mas a alta da Alimentação e Bebidas chegou a 14,09%.

Cito o exemplo do arroz, porque agora, na catástrofe climática do Rio Grande do Sul, estado responsável por mais de 60% da produção de arroz do país, embora a safra tivesse sido colhida de fevereiro a março (as inundações das chuvas vieram no fim de abril), cresceu muito a especulação em torno dos preços do arroz.

Diligente, preocupado com o impacto de um surto altista especulativo com o produto, o governo Lula anunciou a disposição de importar arroz e outros produtos que vierem a falta para impedir os impactos da escalada da inflação no bolso das famílias de menor renda e sua influência sobre os demais preços e, no fim da linha, obrigando o Banco Central a manter os juros altos para debelar as manobras especulativas. Esse é o receituário clássico da cartilha liberal: “laisses faire, laissez passer, laissez aller”, para deixar as forças do mercado se ajustarem ao quadro de escassez.

Aqui para nós, uma tremenda estupidez. O menor custo para a sociedade é gastar um pouco do saldo comercial na compra de produtos que estão momentaneamente em falta para evitar a contaminação geral da inflação, dado o processo de indexação da economia brasileira: uma pequena pedra atirada num lago provoca ondas inflacionárias que contamina não apenas as margens do Guaíba e da Lagoa dos Patos, mas toda a economia brasileira e a dívida das famílias e micro e pequenos empresários, os elos mais fracos da cadeia.

As vozes do liberalismo, que chegaram a lamentar, pela palavra do governador Eduardo Leite (PSDB-RS) a generosidade dos brasileiros com a doação de alimentos e artigos de primeira necessidade para a população assolada pela enxurrada e pelas cheias, “pois tira espaço e mercado dos comerciantes locais, que precisam se reerguer”, novamente argumentaram que a iniciativa privada precisa recuperar margens de lucro dado os danos econômicos da catástrofe.

Não se deve esquecer que o excesso de liberalismo levou o governo gaúcho a flexibilizar os controles ambientais nas diversas regiões do Estado. E os gaúchos, catarinenses e paranaenses, que venderam pequenas propriedades em seus estados e se aventuraram no desbravamento de terras no cerrado e de florestas no Centro-Oeste, quando o MMA “abriu as porteiras para a boiada passar”, correm, agora, o risco de impactos climáticos da degradação da Amazônia e da aceleração das mudanças climáticas no mundo (rios da Amazônia secaram no ano passado por falta de derretimento de neve nos Andes peruanos).

A ausência de controles para proteger o consumidor não ficou só na desmobilização dos sistemas de estoques reguladores (recriados no governo Lula). A liberação pelo MAPA e MMA, no governo Bolsonaro, de uma batelada de agrotóxicos proibidos no primeiro mundo, teve um terrível resultado aferido em pesquisa divulgada esta semana pelo Instituto de Defesa do Consumidor, e publicada ontem pelo JB Online: vários alimentos processados estão com traços de contaminação de agrotóxicos cancerígenos, como glifosato, nas lavouras de trigo, milho, soja e outros grãos largamente consumidos no país.