O Outro Lado da Moeda

Por Gilberto Menezes Côrtes

[email protected]

O OUTRO LADO DA MOEDA

A Índia e a Reforma Tributária

Publicado em 25/01/2024 às 15:37

Alterado em 25/01/2024 às 15:37

Aprovada no final de 2023, com capítulos ainda a serem votados este ano, a Reforma Tributária sobre bens e serviços gera grande expectativa sobre seus efeitos na substituição de cinco impostos sobre consumo (PIS/Cofins, IPI, ICMS, ISS) por um imposto dual sobre valor agregado (IVA). A partir da sua implementação (a partir de 2026 em uma transição de oito anos). Ao analisar o que se sucedeu na Índia, que fez uma reforma gradual a partir de 2003, o Itaú considera que a reforma deve trazer efeitos positivos para a economia brasileira com a simplificação do complexo sistema atual e redução de ineficiências, mesmo com a aprovação de várias exceções à regra geral.

A Índia também tinha um sistema tributário com distorções semelhantes às do Brasil e passou por processo semelhante de introdução de um IVA e reforma tributária gradual a partir de 2003. Ao analisar a literatura do que ocorreu na Índia (um país de 1,5 bilhão de habitantes, que vivem em território bem menor que o nosso, com a existência de várias línguas e matrizes religiosas, além do complexo sistema de castas, o Departamento de Estudos e Pesquisas Macroeconômicas do Itaú estima que o impacto dessa reforma traz evidências positivas para a economia, em especial, em termos de aumento de vendas, investimento, formalização e produtividade.

Quem ganha e quem perde - Em geral, setores no final de uma cadeia produtiva são os mais beneficiados no aumento de investimento e vendas, enquanto setores no começo da cadeia aumentam a formalização. Replicando o espírito desses estudos para economia brasileira, os setores potencialmente mais beneficiados por redução de distorções seriam os de transporte terrestre, petróleo, serviços de utilidade pública (água e esgoto, coleta e reciclagem de lixo, energia, telecomunicações e gás) e indústria química.
O Itaú tomou por base de simulação dos possíveis efeitos na economia brasileira, três estudos ao longo deste relatório: Hoseini & Briand (2020), Agrawal & Zimmermann (2019) e Aneja et al. (2020). Assim como no Brasil, o caso da Índia reforça o impacto negativo da complexidade tributária na produtividade, no incentivo ao investimento e, portanto, no crescimento econômico.

Impactos teóricos
A mudança para um IVA dual reduz uma série de ineficiências e traz impactos positivos para a economia.
Redução de preços e aumento de vendas: ao reduzir distorções de preços e dupla tributação de insumos, os custos de produção tendem a ficar menores e o preço final para consumidores mais barato. Isso, por sua vez, tende a impulsionar a demanda e, portanto, aumentar as receitas de vendas;
Aumento do investimento: via desoneração e plena recuperação de créditos de bens de capital e preços menores de insumos, podendo aumentar a produtividade;
Aumento do estímulo a formalização: como compras de fornecedores informais não geram créditos tributários, as empresas formais têm incentivos para estimular que seus fornecedores se formalizem ou tendem a transacionar mais com empresas formais;

Reorganização societária
Um ponto pouco abordado até aqui na nossa Reforma é que a nova tributação induz a uma reorganização societária de forma mais eficiente: a cumulatividade tributária do regime atual incentiva a integração vertical, mesmo não sendo eficiente, a fim de ter uma carga tributária menor. Uma melhor alocação de capital pode aumentar a produtividade;

Redução do custo de conformidade: com um sistema tributário mais simples, menos recursos são dispendidos com apuração, recolhimento e contencioso, o que tende a melhorar a alocação de recursos e levar a aumento do potencial de crescimento da economia.

Reforma Tributária na Índia
Entre 2003 e 2008, diversos estados indianos reformaram de forma não-uniforme o sistema de imposto sobre vendas para um imposto do tipo IVA. Anos depois, em 2017, foi introduzido um IVA nacional. Antes da adoção do IVA, o sistema tributário indiano tinha distorções similares às do regime atual do Brasil.

Havia alta complexidade com base fragmentada entre diferentes bens, dupla tributação e incidência em cascata, (inclusive sobre bens de capital), além de guerra tributária entre estados. O processo de implementação do IVA na Índia também teve semelhanças com o do Brasil: somente após o governo federal permitir aos governos estaduais maior autonomia para ajustar suas tarifas e compensar perdas relacionadas à reforma nos primeiros três anos, o IVA começou a ser gradualmente adotado pelos estados.

O IVA estadual tinha uma alíquota geral de 12,5%, com algumas isenções/reduções, assim como diferenciações para desestímulo a alguns produtos, como álcool. O imposto estadual unificado reduziu a complexidade tributária e harmonizou inicialmente as taxas entre estados. Apenas em 2017 a Índia unificou nacionalmente os diferentes impostos estaduais e federais sobre bens e serviços.

Impactos na Índia
Como a implementação do IVA ocorreu em diferentes momentos, é possível comparar antes e depois da implementação do IVA as empresas ou setores em estados cuja mudança ocorreu (grupo de tratamento) com empresas/setores em estados em que a reforma só aconteceu posteriormente (grupo de controle). Qualquer diferença na trajetória entre essas empresas/setores, com os devidos controles, pode ser explicada pela mudança do sistema tributário.

De forma geral, os estudos mostram efeitos positivos significativos nas vendas, investimentos, formalização e produtividade: Hoseini & Briand (2020). Os autores usam índices de ligação chamados de backward linkage (BL) e forward linkage (FL) para identificar efeitos heterogêneos em receita, investimento em capital e formalização. O índice BL revela quanto um setor demandaria de outros setores (estando relativamente no fim da cadeia), enquanto o índice FL mostra o quanto outros setores demandariam do setor em questão (estando no início da cadeia). Ou seja, esses índices indicam o grau em que um setor demanda (oferece) insumos de (para) outros setores da economia.

Sem analisar causalidade, os autores mostram que após a mudança do IVA, produtos com maior BL (i.e, que demandam mais de outros setores) tiveram menor inflação ao produtor. Possivelmente, a adoção do IVA removeu duplicidade tributária sobre seus insumos.

Na média, o investimento de empresas formais aumentou 10% do desvio padrão (dp) após a adoção do IVA. Já o valor agregado total aumentou 30% do dp. Mais ainda, os setores com maior BL tiveram maior aumento de investimento e valor agregado, em linha com a redução da distorção de preços de insumos. Coincidência ou não a Índia tem registrado o maior crescimento na anual do PIB desde 2017 e se sobressaiu após a pandemia da Covid-19.

No agregado, não foi encontrado efeito em termos de maior formalização. No entanto, setores com maior FL aumentaram a proporção de empresas formais, em linha com os incentivos do IVA.

Implicações para o Brasil
A reforma ainda será regulamentada com a aprovação das leis complementares ao longo desse ano e iniciará uma transição de oito anos apenas em 2026. Ainda assim, com a reforma mantendo a neutralidade da carga tributária e reduzindo distorções ao longo das cadeias de produção, espera-se um aumento de investimentos, receita, formalização e produtividade. Além disso, o efeito pode ser maior para os setores com maior demanda (oferta) de insumos de (para) outros setores da economia.

O Itaú replicou os índices de ligação para o Brasil. Calculou os índices de BL e FL normalizados para a economia brasileira, seguindo Guilhoto (2011), com dados da matriz Insumo-Produto de 2015, publicada pelo IBGE. “Setores como os de transporte terrestre, petróleo, serviços de utilidade pública e indústria química são os que poderiam ser mais beneficiados com a redução de distorções tributárias”, assinala o Itaú.

O Itaú observa que “os resultados têm de ser vistos mais como indícios iniciais do que como uma conclusão final”. É que, “apesar de possuírem problemas semelhantes antes da adoção de um IVA, Índia e Brasil são economias diferentes, em estágios de desenvolvimento diferentes e cujas especificidades, como regimes especiais, podem afetar as implicações setoriais da reforma”.