Caso Suno pede lupas da CVM e Banco Central
...
Há muito tempo venho cobrando aqui nesta coluna uma visão mais abrangente da Comissão de Valores Mobiliários sobre o possível conflito de interesses derivado do fato de que muitos bancos de investimentos e assetes managements passaram a controlar sites de notícias. Citava frequentemente os casos da “Exame” (sob controle do BTG-Pactual) e da “Infomoney”, sob controle da XP Investimentos. A CVM baixou instruções para aperfeiçoar as responsabilidades dos Agentes de Investimentos. Creio que falta bem mais.
Desde ontem, com o acionamento, na Justiça de São Paulo, do Grupo Suno (originalmente assessoria de pesquisas e investimentos que passou a ser gestora de fundos) pela Hectare Capital Gestora de Recursos Ltda, sob a alegação de que a Hectare e fundos imobiliários por ela geridos teriam sido vítimas de campanha difamatória promovida pela Suno, parece claro que há muitas balas perdidas no mercado de capitais e que o “xerife” precisa intervir.
Os entreveros entre a Hectare e a Suno Research vem ocorrendo, segundo nota oficial da Suno “desde maio de 2021 em relatórios fundamentados e assinados por seus analistas sobre riscos na gestão do fundo HCTR11”. Mas as rugas vieram à tona em abril do ano passado, quando a B3 questionou a administradora Vórtx sobre fato que pudesse justificar oscilações anormais nas cotas do fundo, com impacto negativo de preço.
A Hectare considera ter sido alvo de campanha difamatória promovida por sócios e colaboradores da Suno, a partir de publicações combinadas e com informações que seriam infundadas, feitas pelo sócio fundador Tiago Reis, pelo gestor de fundos imobiliários Vitor Duarte, pelo sócio Felipe Tadewald Dornelles e pelo analista de FIIs Marcos Baroni. E o caldo entornou de vez hoje pela manhã, quando oficiais de justiça fizeram diligência na sede da Suno, com base em mandado de busca e apreensão expedido pelo juízo da 42ª Vara Cível do Foro Central da Comarca de São Paulo.
Caso pode ser a ponta do iceberg
Chamo a atenção para o estresse extremo pelo qual está passando o mercado financeiro e que parece ter como pano de fundo o debate sobre a elevação da meta de inflação pelo Conselho Monetário Nacional para que o Banco Central seja desobrigado a manter o rigor monetário (a taxa de juros básica do mercado, que é a Selic, está em 13,75% ao ano), de modo a levar a inflação, que está em 5,77% nos 12 meses terminados em janeiro (e deve baixar em fevereiro e descer até a faixa de 4% em abril) para o teto da meta de 4,75% (3,25% que é o centro da meta + a tolerância de 1,50 ponto percentual).
As projeções do mercado apontam para novo estouro das metas este ano (assim como em 2021 e 2022 – em 2020, a recessão causada pela pandemia mundial, que derrubou os preços dos combustíveis, evitou o estouro da meta, o IPCA ficou em 4,52%, para os 5,50% do teto da meta (4,0% no centro da meta + 1,50 p.p), mas a alimentação subiu mais de 14%.
No momento, embora a economia esteja esfriando aceleradamente, porque o governo Bolsonaro antecipou o que podia o crescimento com estímulos ao consumo, distribuiu uma centena de bilhões em recursos aos eleitores, e baixou a inflação drasticamente via redução de impostos sobre combustíveis, energia elétrica e comunicações, o repique destes impostos (pleiteados pelos estados e municípios, no caso do ICMS, e pela própria União, no IPI e no PIS/Cofins, pode pressionar a inflação.
Manter os juros em 13,75% ao ano em nada tolherá o impacto direto e indireto destes reajustes sobre os demais bens e serviços da economia. Mas irá desacelerar ainda mais com uma crise de crédito cuja ponta do iceberg parece ser o caso Suno, mas o gigantesco bloco de gelo que pode afundar a economia é a Recuperação Judicial da Americanas, a rede mais capilarizada do varejo brasileiro, com dívidas de R$ 47,3 bilhões.
CMN deve discutir custo do crédito e não a meta
Este sim é o cenário que deveria estar sendo discutido amanhã pelo Conselho Monetário Nacional. O BNDES já acionou os escaleres para salvar as milhares de empresas fornecedoras da Americanas, com linhas de crédito a largo prazo (e a juros mais baixos) para que possam atravessar uma crise de liquidez que seria fatal. É sabido que o comércio faz encomendas mais elevadas à indústria em agosto e setembro para suprimento das vendas de Natal. Com a introdução da “black friday” no Brasil, o movimento se antecipou para novembro e dezembro. Mas ambos os meses já foram muito fracos nas vendas, como reflexo dos altos juros no crediário e no cartão de crédito, sem contar o fato efetivo de que a inflação dos alimentos, do vestuário e das despesas com saúde ficaram muito acima de 10% no ano passado, tolhendo o consumidor.
Em sua atualização do Cenário da Economia publicado ontem, a LCA Consultores adverte que “os riscos de uma contração aguda do mercado de crédito aumentaram substancialmente nas últimas semanas, em particular depois do episódio da Americanas”, acrescenta, dando razão à disposição do BNDES de jogar uma rede de proteção à imensa cadeia de fornecedores da varejista: “A desaceleração da atividade e o aperto monetário já são fatores importantes a conter a demanda por crédito. Já um “efeito-dominó” do episódio da Americanas poderia deteriorar o mercado de crédito pelo lado da oferta”.
A LC fez um gráfico impressionante sobre a desaceleração do comércio e da indústria, sob influência nítida das taxas de juros, bem maiores que a Selic. A forte alta do setor de serviços é um pouco ilusória. Parte de uma base de comparação deprimida até o 2º semestre de 2022, quando as atividades ligadas ao turismo, hospedagem, bares e restaurantes, lazer e cultura estavam retomando o ritmo após a profunda queda na pandemia, em 2020 e 2021.
Âncora puxa para o fundo
Em meus conhecimentos básicos de navegação, uma âncora puxa a embarcação para o fundo e a segura. Quando não está boa a ancoragem (caso do navio que estava abandonado na Baía de Guanabara e que após um forte vendaval se soltou e colidiu com a Ponte Rio-Niterói, há mais risco de uma má ancoragem do que uma embarcação com motor ligado e a tripulação a postos, salvo se as condições meteorológicas recomendarem a atracação no cais.
A turma que já passou pelo painel de controle do Comitê de Política Monetária do Banco Central tem um linguajar próprio que valoriza demais a “ancoragem” das expectativas, que podem ser modificados com fatos externos (a invasão da Ucrânia pela Rússia, em 28 de fevereiro de 2022 mudou radicalmente o cenário econômico – Paulo Guedes largou o leme do Copom (pois viu que a candidatura à reeleição de Bolsonaro corria risco de não chegar ao porto e interveio diretamente nos preços dos combustíveis, que agora dão repique).
Vejam o novo cenário revisto esta semana pelo Itaú, cujo Departamento de Estudos Econômicos é chefiado por Mário Mesquita, ex-diretor de Política Monetária do BC, cargo que será ocupado até dia 28 de fevereiro por Bruno Serra: “Revisamos projeção de inflação em 2023 para 6,3%, de 5,8%, incorporando revisão altista em preços administrados (gasolina, emplacamento e licença, plano de saúde e energia elétrica). Revisamos a projeção para o próximo ano para 4,2%, de 3,7%, com impacto da desancoragem das expectativas de inflação. Uma maior desancoragem e eventual revisão da meta poderia levar a projeção de 2024 para acima de 5%”.
Estou com André Lara Resende e com Olivier Blanchard, ex-economista do Fundo Monetário Internacional, que advogam que juros muito altos só derrubam a economia, não a inflação.