Em busca da imaginação dos artistas

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Pintura de Edward Hopper

A realidade tornou-se insuportável. Não toleramos mais suas iniqüidades e brutalidades, seus métodos fascistas. Já acordo todo dia com enjôo da realidade. Houve uma época, povoada de sonhos, combates nas trevas, viagens e drogas, que era com enjôo do absurdo que despertava. Agora, a hiper-realidade nos acua por todos os lados, com a conivência da inteligência artificial e dos algoritmos.

Somos obrigados, diariamente, a entrar na vida íntima de Ana Hickmann, seja ela quem for. A cada hora somos informados de um novo detalhe da agressão que sofreu do marido. Mesmo que não quiséssemos saber, tornou-se imperativo conhecer os meandros do ataque do empresário, que torceu o braço da modelo. Impossível ignorar sua onipresença nos sites de noticiais dos jornais e nas redes de tevês, que repetem a mesma história como se fosse um mantra, um acontecimento mais importante do que a velha luta de classes.

Logo me lembrei da frase com que Marx e Engels encerram o Manifesto Comunista, publicado pela primeira vez em fevereiro de 1948, em Londres: “Proletários de todos os países, uni-vos!”. Esta questão caiu numa prova do Enem, assim formulada: “Com base nos conhecimentos sobre o pensamento marxiano acerca das contradições e lutas de classes na sociedade capitalista, assinale a alternativa correta”. Seguiam-se cinco opções para marcar um com um X. Apenas três jovens acertaram a resposta, salvo engano ou por engano.

A saída para a tragédia do excesso de real em nossas vidas está em convocar os artistas, entregar em suas mãos a vil realidade tal qual se apresenta, e pedir-lhes para que a transformem e desfigurem. Chamar Cortázar e pedir a ele para montar um novo Jogo da Amarelinha. A Edward Hopper, uma recriação da pintura em que pessoas estão sentadas em bancos altos, em torno do balcão de um bar. Parecem solitárias e envoltas em brumas.

A Woody Allen solicitar que nos transporte a sua Nova York querida e nos conduza até um pequeno e enfumaçado clube no West Village, para nos deleitar aquela noite com uma sessão de jazz no Blue Note. Sentaremos numa mesa para tomar um drink, cheirar pó e ouvir Charlie Parker.

Numa tentativa de escapar deste massacrante realismo cruel e ignóbil, entrei no Metrô em Copacabana e saltei na Estação Carioca, no Centro. Ao descer a escadaria, passei por um homem preto com uma boina enterrada na cabeça, soprando em seu sax algo como “Easy to Love”, de Cole Porter. Logo adiante, em meio a bancadas que exibiam uma intensa variedade de livros novos e usados, me deparei com uma mulher burguesa, com um vestido longo, chorando copiosamente.

Estou repetindo um clichê, mas é isso mesmo, ela chorava copiosamente ao lado de um vendedor naquele sebo improvisado de livros, montado em frente à avenida Rio Branco. Perguntei do que se tratava, mas a elegante senhora vestida de azul não me deu atenção.

“A fadiga que sentimos não é tanto do trabalho acumulado, mas de um quotidiano feito de rotina e de vazio. O que mais cansa não é trabalhar muito. O que realmente cansa mais é viver pouco e sem sonhos”. Mia Couto, in “O universo num grão de areia’. Eu acrescentaria a este grão de areia os atos reais de violência e crueldade, o excesso de fanatismo e de estupidez.

Todo mundo se queixando de dores, dissabores, término de amores, desemprego e fome. Os botafoguenses lamentam um desastre inimaginável, uma sina maligna que os persegue e amesquinha seus corações solitários. Sonham com Garrincha e Didi.

E estamos muito distante dos palestinos mortos nas ruas de Gaza em meio aos escombros de prédios e casas destruídos por bombardeios israeleneses. Longe dos tanques na fronteira da Rússia com a Ucrânia e do novo morador de uma antiga Casa Rosada, em Buenos Aires.

Javier Milei não passa do clone de um cachorro infame. Esta é a realidade. Como diz Julian Fuks, trata-se de um homem intratável e triste, que vive só, com seus quatro cães. Nunca cultivou amizades. Perdeu seu único amigo, Conan, um mastim inglês. Com sua morte, Conan foi clonado em quatro novos mastins. São cachorros grandes, fortes e agressivos. Um deles se soltou e atacou o outro. Ao tentar separá-los, o homem desgrenhado foi alvo dos cães, sofrendo uma mordida no braço esquerdo.

Esta semana marca dois meses de guerra. As tropas do exército israelita avançam pela Faixa de Gaza e centenas de milhares de habitantes vagueiam de um lugar para outro em busca de refúgio. Segundo as Nações Unidas, dezenas de milhares de palestinos de Gaza estão sendo empurrados para Rafah, a cidade mais a sul da Faixa e a porta de saída para o Egito. Uma situação descrita pela ONU como “apocalíptica”, algo que permite crimes de guerra.

Esta é a execrável e inaceitável realidade. Neste período desde 7 de Outubro, um dos exércitos com melhor tecnologia e poder bélico do mundo, que perdeu 83 dos seus homens, matou mais de 16.000 pessoas e destruiu grande parte das casas e infra-estruturas no território de Gaza. Seria isto um genocídio? Para Netanyahu, é apenas uma questão de tempo, até que concluam sua limpeza e destruam tudo,

Neste cenário torna-se relevante o brado urgente pela união dos artistas de todo o mundo. Trabalhem sem descanso, façam como fez Picasso com Guernica.

*Jornalista e escritor