Entre realidade e ficção

Por Álvaro Caldas

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ENTRE REALIDADE E FICÇÃO

A catarse de junho de 2013 continua um enigma dez anos depois

Publicado em 08/06/2023 às 15:04

Manifestante de junho de 2013 Foto: Midia Ninja

Ocupações, barricadas, invasão de imóveis, grupos subindo o telhado do Congresso Nacional, destruição e incêndios de ônibus, a violência da repressão policial militar nos confrontos com os manifestantes. Os confrontos da grande revolta popular que sacudiu o país em junho de 2013 continuam desafiando seus intérpretes. Dez anos transcorridos, o tom ainda é de perplexidade e as interpretações se chocam. Não há consenso sobre o que desencadeou as manifestações que se espalharam em ondas por todo o território nacional.

Foi o fracasso da política como força de mediação de conflitos. Tudo estava nas ruas, menos os partidos, em especial os de esquerda, que estavam distantes e não compreenderam o que se passava. Uma bruma de fumaça ainda encobre as jornadas que se prolongaram por mais de um mês, com suas pautas difusas, algumas específicas, e métodos variados. Um acontecimento fora da curva, que se passou ao largo da História.

Quem eram e o que pretendiam os manifestantes? O que queria aquela multidão possuída por uma energia frenética que encheu as ruas, agitou e destruiu o que encontrou pela frente, como se fosse uma formação heterogênea de um renascido proletariado marginal? Havia grupos com propostas de esquerda, mas também outros com demandas à direita. Bandeiras de partidos foram queimadas.

Analistas estão de acordo em que as jornadas de junho teriam aberto espaço para o impeachment de Dilma Rousseff e a ascensão de um tipo de político não-político, algo assim da laia de Bolsonaro. Em junho de 2013 Dilma tinha dois anos e meio de mandato e estava sob intensa pressão econômica e política do establisment conservador e da mídia liberal, que já anteviam um golpe para afastá-la.

Sociólogos, cientistas políticos, economistas, jornalistas, (políticos não se atrevem a opinar) em análises publicadas na imprensa no último fim de semana, procuram contextualizar o que foi aquilo dentro da História. Um levante, uma rebelião, uma revolta? A sugestão de que houve uma tentativa de insurreição não faz sentido. Insurreições visam à tomada do poder. Também não se pode falar em uma revolução abortada. Terá sido um transe, uma catarse, uma explosão da multidão sufocada pela exploração, humilhada e escanteada pelos políticos, os dominantes ricos e poderosos?

Se procurado, um homem do povo o que diria? André Kowalski, de ascendência polonesa, 30 anos em junho de 2013, carregava uma garrafinha de coquetel molotov dentro da mochila ao se aproximar de uma manifestação, na avenida 23 de maio. Não era filiado a partido nenhum. Leitor de pornografia, contaminado por uma tendência anarquista puxada do avô, morto na resistência à invasão das tropas nazistas na Grande Guerra, queria sentir o fervor da multidão.

Trabalhara em um escritório de advocacia durante anos. Cansado da embromação e da rotina foi para a rua. Primeiro como atendente numa Ótica, depois motorista de Uber. Exasperado com a mediocridade, a incerteza do futuro, a miséria das pessoas e a roubalheira geral, decidiu atender ao chamado para o protesto contra o aumento das tarifas de ônibus, trem e metrô de São Paulo. Não gostava da gente da suástica de direita, nem da turma da foice e do martelo. Nunca ouvira falar em Marx nem no 18 Brumário. Preparou seu coquetel, ajeitou o pavio e foi para o confronto.

Uma legião urbana foi para as ruas sem caracterização política, sem ligações partidárias. Despolitizados no sentido sociológico. Em sua composição, pessoas de renda mínima que lutam pela sobrevivência, lumpesinato de um novo tipo, gente que transita pelas ruas e calçadas das cidades, desempregados, entregadores de coisas, estudantes, secundaristas em sua maioria, poucos universitários.

Manifestantes de campos diferentes que confluíram para as ruas no mesmo lugar. Numa cidade cosmopolita, gente aglomerada na rua é sinal de poder. A destacar que não houve a presença de lideres, pessoas que assumissem uma bandeira ideológica e tomassem a frente com palavras de ordem. Diferente de outras manifestações ao longo da história, atos e assembleias não foram organizadas por um líder de massas, não se gestou uma nova liderança política capaz de se projetar para o futuro.

Para a socióloga do Cebrap e professora da USP, Angela Alonso, eventos deste tipo são muito raros. “Porque significam uma desestruturação geral das relações entre governo e sociedade. Grandes manifestações só ocorrem na hora em que há uma insatisfação que vem de várias direções e que se conjugam no mesmo contexto. E também quando o governo fica incapacitado de dialogar. Não são situações freqüentes”.

Angela, que se dedicou a estudar esses acontecimentos, é autora de “Treze, a política de rua de Lula a Dilma”, Companhia das Letras. No seu entendimento, a longo prazo prevaleceu a idéia da antipolítica. A representação dos cidadãos não deveria caber aos partidos e aos políticos, mas sim a esses novos atores. A idéia de que não somos políticos gerou a celebração de figuras como Sérgio Moro e abriu espaço para lideranças do tipo Bolsonaro.

Para o professor de Filosofia Política da Unicamp e pesquisador do Cebrap, Marcos Nobre, o PT não entendeu nada. “De volta ao Planalto e junto com uma grande parcela da esquerda, seguem sem compreender as dimensões desta grande revolta popular. Consolidou-se uma interpretação dominante de que os protestos foram responsáveis por todos os desastres que se seguiram no período”.

‘Ovo da serpente’ é a senha para a demonização do junho de 2013. Segundo Nobre, para conseguir ver adiante o primeiro passo necessário é o da reconciliação com a multidão de junho.

*Jornalista e escritor

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