João Antônio Malagueta Bacanaço, um clássico de nossas letras

Por ÁLVARO CALDAS

João Antonio jogando sinuca

Vira e mexe volto ao João Antonio, seja para simplesmente matar as saudades e saudar sua pessoa, seja para fazer uma homenagem e lembrar aos jovens que ele merece cada vez mais ser lido. Desta vez fui atraído pela divulgação dos 60 anos de Malagueta, Perus e Bacanaço, seu livro inicial e de maior sucesso. São três jogadores de sinuca, tipos tão marcantes que seus nomes acabaram se juntando ao do escritor. Não tenho conhecimento de outro autor cujos personagens tenham se fundido de tal forma com seu criador quanto João Antônio, um autor já chamado de marginal que o tempo tratou detornar clássico.

Com Malagueta, Perus e Bacanaço, talvez o mais célebre entre todos os seus livros, o jovem autor, então com 26 anos, ganhou o Jabuti e chamou a atenção de grandes nomes da crítica literária, como Antonio Cândido, Mário da Silva Brito e Alfredo Bosi, atraídos por seu estilo peculiar e outros elementos que distinguem sua obra, como o huma-nismo e o posicionamento estético centrado nas periferias urbanas e humanas de grandes cidades brasileiras.

Paulistano que se fez carioca e se tornou um escritor brasileiro lido mundo afora, cuja obra, espalhada e dispersa ao longo do último meio século, está sendo e relançada pela Editora 34. Fascinado pelo submundo, a Boca do Lixo, os inferninhos da praça Mauá e pelos mistérios que rondam as cabeças e movem os pés dos malandros que rodam quilômetros em torno das apostas numa mesa de sinuca.

Narrador visceral, viciado na escrita, capaz de passar horas fumando e conversando com seus fantasmas e demônios diante do teclado de sua máquina de escrever. Uma vez pedi a ele para ler o original de meu livro Balé da Utopia, que havia acabado de escrevendo. Ao devolver, ele disse. “Está muito bom, mas deixe dormir alguns dias e depois volte a ler com calma”.

Passados 60 anos de Malagueta, a produção do escritor, que transitou pela literatura e o jornalismo, vem sendo analisada por críticos e pesquisadores acadêmicos, que comprovam a sua atemporalidade literária. Integrada a esse processo, a Unesp-Assis, onde se encontra depositada parte de sua obra, organizou o simpósio “Acervo João Antônio em perspectiva – 60 anos de Malagueta, Perus e Bacanaço”, oportunidade para estudan-tes e professores conhecerem o autor e sua trajetória.

O texto de João Antônio flui com a magia da linguagem popular, frases curtas, sonoridade reproduzindo a linguagem oral, conforme notou Jesus Antonio Durigan, professor de Teoria Literária da Universidade de Campinas. Dá a impressão de um trabalho de montagem, em que o narrador assume e incorpora seus personagens, uma variada galeria de tipos marginalizados pela sociedade - marginais, gigolôs, prostitutas, jogadores, ma-landros. Alguns deles presentes em Leão-de-chácara, já relançado pela 34.

Ninguém em sua obra, nenhum dos seus tipos, está a passeio. Ralam todos, num corpo-a-corpo permanente com a vida. João não era de morder água e se comeu do pão que o diabo amassou soube transformá-lo com suas próprias mãos, recriá-lo com a refinada farinha de sua arte para então servir ao distinto publico uma pasta digna dos melhores criadores. “Paulinho Perna Torta”, moleque de rua criado na Boca do Lixo, outro de seus inesquecíveis personagens, está aí para comprovar.

Seu perfil-obituário do jornalista Esdras Passaes, “Morre o valete de copos”, no livro Guardador, da Civilização Brasileira, é peça antológica. “Morreu Esdras Passaes, o du-ende morreu. Morreu o homem que sabia ouvir a música dos copos. Morreu o nosso ami-go que gostava de tango, era compadre de Nelson Cavaquinho, tratava marafona como princesa, usava cigarro na cigarreira, relógio de bolso e virava quadros de cabeça para baixo. Matou-se de viver e de beber. (...) Não é de meu conhecimento o que se lavrou em seu atestado de óbito. A causa mortis pode ter sido uma só, sentidamente – alma de cristal. Descansa, Esdras. Dorme, cara. O porre acabou.”

O resgate da obra de João Antônio pela editora 34 começou com as reedições de Malagueta, e “Leão de Chácara”. Aguarda-se a volta de “Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto”, misto de reportagem e memória sobre o período em que o autor esteve internado no antigo sanatório da Muda, no Rio. A Lima Barreto, pioneiro, por quem tinha enorme admiração, João Antônio consagrou grande parte de seus livros.

E agora Malagueta, diga lá Perus, sai desta sinuca de bico Bacanaço! O homem, o criador, o pingente, o meninão do caixote, afinado na arte de chutar tampinhas, que dormia abraçado ao seu rancor, despediu-se extremamente só, em 1996, com 59 anos. Foi en-contrado morto em seu apartamento em Copacabana, Praça Serzedelo Correia, conhecida como praça dos Paraíbas. Sempre andou fora das panelas e panelinhas literárias, en-frentou perrengues e esbregues e carregou até o fim uma santa e pura dignidade.

Que os jovens possam descobri-lo nas livrarias e nas escolas da vida.

*Jornalista e escritor