Entre realidade e ficção

Por Álvaro Caldas

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ENTRE REALIDADE E FICÇÃO

Chegou a hora de repetir o grito de Nunca Mais

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Publicado em 20/10/2022 às 13:56

Alterado em 20/10/2022 às 13:56

Álvaro Caldas JB

Sufocada por uma grave crise política e econômica, a Argentina novamente encontra meios de se reerguer enfrentando o seu próprio passado, Em cartaz há três semanas, Argentina, 1985, com Ricardo Darin no papel do promotor Julio Strassera, lota os cinemas de Buenos Aires e dos bairros. O filme relembra o histórico episódio do Julgamento das Juntas Militares, que em 1985 colocou no banco dos réus nove comandantes militares da ditadura argentina (1976-1983).

Numa cena que provoca forte comoção, os espectadores levantam-se para aplaudir quando Strassera termina a leitura, durante 12 minutos, de sua peça de condenação e brada um Nunca Mais que ressoa pela sala do tribunal. Diante dele, a câmera mostra o olhar atônito do general Jorge Rafael Videla, de pé, na frente do banco, enfileirado ao lado dos demais comandantes. Indicado para disputar o Oscar de melhor filme estrangeiro, o filme já foi visto por cerca de um milhão de pessoas.

Dirigido por Santiago Mitre, Argentina, 1985, conta a história do promotor Julio Cesar Strassera, em interpretação magistral de Ricardo Darin, que vive num pequeno apartamento de classe média em Buenos Aires, Ele passa a receber vários tipos de ameaças para desistir, inclusive uma carta deixada em cima da mesa de seu escritório com uma sentença de morte datilografada e uma bala em cima do envelope.

Para realizar seu trabalho de investigação, Strassera contou com a colaboração de um grupo de jovens advogados dispostos a denunciar os crimes. Eles se aproximam do escritor Ernesto Sabato, que comandava a Comissão Nacional sobre Mortos e Desaparecidos, que reuniu milhares de depoimentos de vítimas e parentes de vitimas.

Na época, 1985, durante o governo chefiado por Raúl Alfonsin, o primeiro presidente eleito democraticamente após a ditadura, os argentinos ainda desconheciam os crimes de lesa humanidade praticados durante os sete anos da ditadura. Oficiais militares que presidiram as Juntas foram responsáveis pela tortura, desaparecimento e morte de mais de 30 mil pessoas. Nenhum outro país latino-americano que passou por ditadura realizou um julgamento com esta dimensão, condenando a cúpula do regime militar.

No Brasil, torturadores e assassinos responsáveis por graves violações de direitos humanos foram anistiados, perdoados e retomaram suas vidas num ambiente de impunidade. Militares foram condecorados e promovidos. O mais notável deles, o coronel Ustra, tornou-se herói do presidente Bolsonaro, que convidou sua viúva para integrar seu governo. Mais de meio século depois, o país está diante de uma eleição presidencial decisiva para seu futuro, com um candidato de extrema direita, egresso dos porões, disputando o poder.

Nesta encruzilhada de países que agiram de forma diferente num momento crucial de suas histórias, me deparo com a entrevista de um jovem músico e compositor brasileiro, que teve os primeiros anos de vida marcados pela inaceitável e insólita tragédia do desaparecimento de seu avô.

Leo Alves Vieira é neto do jornalista Mário Alves de Sousa Vieira, que ele não conheceu. Político revolucionário, Mário foi empalado e assassinado dentro de um quartel do Exército e teve seu corpo enterrado num cemitério clandestino ou jogado no mar. Numa tarde, em janeiro de 1970, Mário despediu-se da mulher Dilma, saiu de cada para cobrir um ponto com um companheiro e desapareceu.

Leo conviveu com esse mistério desde cedo e tornou-se integrante do Grupo Filhos e Netos por Verdade Memória e Justiça, que passou a freqüentar levado por sua mãe, Lúcia. Seu depoimento faz um contraponto com a memória do filme argentino sobre o julgamento dos comandantes militares.

Em entrevista à Agência de jornalismo independente Saiba Mais, disse que “o passado não enfrentado reaparece na forma de Bolsonaro.” Olhando através dos túneis da história, ele vê o Capitão entre os assassinos de seu avô, que jamais foram levados a um tribunal.

“O não enfrentamento do passado autoritário, a dificuldade de construir uma memória crítica da ditadura, abre caminho para que a sociedade não reveja os seus valores no presente e continue construindo projetos autoritários que aceitam a violência, criando a sensação individual e coletiva de que sempre foi e sempre será assim.”

Para o compositor Leo Alves, que cresceu e se formou em meio às lembranças do avô, a luta pela anistia e a punição não alcançada dos torturadores, a eleição presidencial mostra que o passado não enfrentado reaparece sob a forma de uma sociedade monstrenga que acha normal um candidato que defende abertamente a tortura receber 50 milhões de votos.

Em Veneza para o lançamento de Argentina, 1985, o diretor Santiago Mitre disse que fazer o filme foi um projeto arriscado, mas valeu a pena porque pessoas de outros países sentem que aquele julgamento foi uma vitória de todos. Ele se disse preocupado com os tempos em que vivemos, “vejo muitos jovens que não abem nada da ditadura”. Em nome do respeito à memória, é importante que conheçam os crimes e sintam a vibração do grito de Nunca Mais.

*Jornalista e escritor

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