ENTRE REALIDADE E FICÇÃO
Olga D´Arc reinventa a vida num flutuante no rio Negro
Publicado em 28/07/2022 às 13:09
Alterado em 28/07/2022 às 13:09
Nunca que eu poderia imaginar que minha amiga e conterrânea Olga D´Arc fosse um dia morar numa casa flutuante no rio Negro, dentro da floresta amazônica. Mas é ela mesmo que vejo num vídeo que me foi enviado, a mesma morena bonita de pele tostada, cabelos cacheados e embranquecidos, com duas covinhas na face. Desce de uma canoa, dá dois passos para o lado, abre um sorriso desafiador e diz que vive em plena harmonia com a natureza.
Não tem medo de nada, seja jacaré, cobra, ou onça, nem de quando o rio fica brabo, com o fenômeno das altas ondas do banzeiro. Tudo o que precisa para viver está ali ao seu redor, os bichos, os peixes, os indígenas, as árvores e as frutas. Ela mesma faz o que precisa ou pega com as mãos, não tem necessidade de apertar nenhum botão.
Sempre admirei as virtudes naturais de Olga, seu ritmo obstinado, seu andar aprumado, ainda mais agora ao ver que ela escolheu outra vida. Ou melhor, teve a coragem de reinventar seu modo de viver, tornando-se parte do rio e da floresta. Vive com um companheiro que passa de um lado para o outro no vídeo, dependurando roupa no varal. E com Amora, uma neta lourinha, que come farinha todo dia e nada que nem um boto.
Depois de muitos anos, de uma vasta experiência profissional, de viagens, amores, conquistas e perdas, de três casamentos e de três filhos, que eu me lembre, ela deu a virada com uma sóbria e pertinaz determinação. Tornou-se uma ribeirinha, amiga dos jacarés que desovam lá na ponta do igarapé, das cobras verdes que voam para pegar passarinhos nas árvores, vizinha de onças, admiradora do elegante andar das preguiças.
De tudo o que tinha se desfez, deu ou vendeu. Jogou para o alto, mostra fazendo um gesto amplo, abrindo os braços. Diz que sua casa é um palácio e que mora num paraíso, que adora o rio e detesta o lixo, busca a simplicidade e a harmonia com a natureza. Mas não esconde que perdeu uma batalha: o tabaco ela não conseguiu deixar e continua fumante, mesmo sabendo que está perdendo horas de vida.
Olga D´Arc Pimentel nasceu em Goiânia, estudante veio para o Rio de Janeiro, onde passou boa parte dos seus 73 anos. Durante a ditadura, militou numa organização de luta armada, a VAR Palmares, cuja lema “ousar lutar, ousar vencer”, ela encarnava. Fez Sociologia, casou-se com o comandante Cláudio Câmara, foram presos. De temperamento irrequieto, uma hora cansou-se da vida no Rio e se mandou para Manaus, chegando mais perto dos encantos da floresta.
Na capital, morou num velho casarão, trabalhou no escritório da Fiocruz até se aposentar. Lá conheceu e foi enfeitiçada pela sabedoria de um velho pagé, Gabriel Gentil. Em longas conversas com ele, fortaleceu sua decisão. Comprou o flutuante e o transportou para o rio. Logo que chegou, construiu uma oca em homenagem ao pagé, que serve como um pequeno templo onde faz suas reflexões e orações.
O vídeo que vejo é uma entrevista dada por Olga a uma jovem repórter que a localizou em sua casa flutuante. Paula Cristina passou dois meses na Amazônia e ouviu muitas histórias. Trabalha de forma independente na produção de Narrativas Femininas pelo Mundo, exibidas pelo Youtube, Seguindo Olga pela pequena casa de madeira bem arrumada, ela vai descobrindo os mistérios de uma vida em completa liberdade, em contato direto com a natureza amazônica.
A goiana-amazonense acorda muito cedo e trabalha o dia todo. Às vezes pega a canoa e vai até a comunidade fazer compras e trocar mercadorias Ao lado da oca, criou uma feira que se reúne uma vez por semana, aos sábados. Em grupos de diferentes etnias, os moradores chegam para conversar, dançar, debater problemas de preservação. A área não está na região de conflitos da floresta, com invasões e histórico de violência.
Na área externa ela fez um banheiro ecológico, uma casinha de madeira com o chão cimentado e um buraco aberto no meio. Não tem privada. Faz cocô de cócoras, porque assim, segundo ela, elimina tudo, o intestino fica limpo e não polui a natureza. Com o tempo o cocô resseca, é recolhido, misturado com folhas e terra, virando adubo.
Abriu mão de qualquer vaidade ou ambição. A vida transcorre numa rotina de integração com a natureza, num processo gradual que teve início há 15 anos e meio. Trouxe um celular, atendendo a uma exigência do filho Breno. Adotou a oralidade para se comunicar, não escreve mais nada, só o essencial. A fala é verdadeira e passa emoção. Assim, conversa com as árvores, os bichos, o rio, a neta e o companheiro silencioso. Tira de um poço a água que usa para beber e cozinhar. Desce a corda com uma vasilha na ponta e em seguida a recolhe utilizando uma roldana, manejada por Amora.
Corre os olhos pelo interior da casa e mostra à Paula, nas prateleiras de uma pequena estante improvisada entre o corredor e o quarto, os livros que salvou. Penso nos versos de Folhas de Relva, do poeta Valt Whitman: “Daqui em diante não peço mais boa sorte, boa sorte sou eu mesmo.”
Apaixonada pelo rio e pela floresta, Olga sabe que está numa luta gigantesca e violenta. Almeja dar sua contribuição para preservar a floresta e postergar a vida da terra, “não agredindo não sou agredida”. Tarefas que exigem decência e coragem. Decência e coragem, ela repete.
*Jornalista e escritor