Entre realidade e ficção

Por Álvaro Caldas

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ENTRE REALIDADE E FICÇÃO

Acossados pelo frio, assustados pelas trevas

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Publicado em 09/06/2022 às 17:39

Alterado em 09/06/2022 às 17:39

Álvaro Caldas JB

Cara Ângela,
Precisei dormir as três últimas noites com dois cobertores e calça comprida de moleton. Tua antiga cidade nunca foi tão fria assim em pleno outono, início do mês de junho. Depois de tantos anos fora, talvez você nem se lembre mais disto. Já se acostumou ao frio cinzento de Londres e agora a estas calçadas irlandesas cobertas de neve. Antes de sentar para redigir esse email, que prefiro chamar de carta, fui à cozinha es-premer uma laranja enquanto pegava uma torrada de pão integral, para comer com uma fatia de queijo minas. Preparei um expresso e caminhei devagar para entreabrir a cortina da janela. E me postei aqui, apoiado nesta mesinha, diante da rua deserta encharcada pela chuvinha que cai mansamente.

A primeira coisa que vejo na telinha do celular é o Luiz Inácio andando no estrado de um palco, pra lá e pra cá, vestido com um pulôver azul e um paletó escuro de lã. Com um microfone na mão ele diz para as pessoas sentadas no auditório que é preciso juntar os divergentes para derrotar os antagônicos. “Tem momentos na história que é assim”, diz ele com sua voz rouca.

Lula é um fruto da terra, um homem com visão de mundo e os pés no chão. Como você diz muito bem, não há explicações para certos fenômenos. Ele tem o dom da con-versa. E de não se abater. O outro é um homem saído das trevas, falso, maligno, uma fruta podre, como nunca houve igual na política brasileira.

Está implantando aos poucos em nossas vidas os costumes de um estado policial mili-tar, em que a Policia Rodoviária vira órgão de repressão. Invade comunidades populares e transforma o cubículo traseiro de viaturas numa câmara de gás. Mataram um negro assim, sufocado lá dentro.

Queria escapar dessa rotina de aflições e incertezas que se espalham como um gás que sufoca. Outra coisa perturbadora são as mortes de amigos e amigas, Diárias, seguidas, silenciosas. E não estamos em guerra, Nossos mortos não são vistos, não é como nos filmes. Agora foi a Glorinha, a fotógrafa e pesquisadora Glória Ferreira. Seu antigo na-morado no exílio sueco me acordou de manhã com a notícia, chorando, inconsolável.

Sei que te irrito quando me lembro destas coisas que nos deixam assustados. Outro dia mesmo você reclamou. Acontece que estamos em meio a uma divisão crucial, exas-perante. Um ambiente envenenado, com um criminoso apontando uma arma para nossa cabeça. As vezes, somos premiados com centelhas de pequenos acontecimentos que tra-zem alegrias. Meu neto Theo ligou e me convidou para almoçar em sua casa uma delicio-sa carne assada envolta num molho suculento, preparada pela Nice. Um banquete nos melhores botequins.

Antes quero lhe dizer uma coisa. Seu ex-marido vai se casar. Arrumou uma namorada divorciada, que leciona História numa universidade do interior do Estado. Tem duas filhas gêmeas. Ele me procurou para pedir ajuda. Precisa reunir os documentos e não os encontra, você sabe como é. Não sabe onde colocou os papeis do divórcio. Pediu-me que falasse contigo, dissesse para ficar tranqüila, que ele não vai misturar nada, cada família é uma família.

Assim, vamos nos aproximando de uma eleição radicalizada, que não dá tréguas. Es-tamos com medo, diante de um salto no abismo. Mas como te falei há coisas que surpre-endem neste espaço contaminado. Surgiu uma Coalizão Negra por Direitos que criou a operação Quilombo no Parlamento. São movimentos negros de diversas partes que se juntaram numa aliança suprapartidária, e já lançaram mais de cem candidaturas ao Con-gresso Nacional e assembléias estaduais. Uma idéia de impacto para colorir esses espaços dominados pelos brancos.

E outra boa noticia, especialmente para você, que se tornou uma dublinense estudiosa de ópera. Ninguém diria, uma moça que entrou para engenharia na Puc. Para sua alegria teremos no Teatro Municipal uma Aída negra, interpretada pela soprano Priscila Olegá-rio, a primeira negra a encarnar o papel da princesa etíope que se tornou escrava. Será que seu amigo Giuseppe aprovaria?

Vou te fazer uma confidência. Pergunto se não seria a hora de entrar de novo num avião? Passada a pandemia, estou pensando em lhe fazer uma visita. Vou com a Alice, você explica ao Burke que vai receber amigos. Nos encontramos em Dublin. Você me mostrará aquelas paisagens do roteiro que uma vez enviou. Velhas e desoladas mansões, os arcos feudais dos prédios da King’s Inns. Entraremos numa taberna em Dorset Street, veremos a triste fileira de casebres enegrecidos perto do cais.
Nesta caminhada pelas ruas, em pouco tempo sentiremos a sombra de Joyce com seu séquito de personagens andando ao nosso lado. Aguardo sua resposta. Abraço,
A.

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