Entre realidade e ficção

Por Álvaro Caldas

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ENTRE REALIDADE E FICÇÃO

De Catarina II a Lênin, a Rússia chegou a Putin

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Publicado em 12/05/2022 às 15:46

Alterado em 12/05/2022 às 15:46

Álvaro Caldas JB

Nada como um século depois do outro. Uma parte da grande e secular alma russa se desmancha diante do espetáculo de mortes e atrocidades da guerra iniciada por Putin com a invasão da Ucrânia. Uma lendária história de conquistas, fausto e projeção internacional, que vem do czarismo com Catarina, a Grande, no século XVIII, passa pela revolução bolchevique de Lênin, no vigésimo, até chegar às mãos de Vladimir Putin, há mais de vinte anos no poder.

Ao final desta guerra o que restará da grandeza e magia da velha Rússia, que ao longo dos tempos forjou a identidade de sua população com os elementos imateriais de um rico e diversificado universo artístico. Até que ponto permanecerá inatacável e inatingível para a eternidade seu imenso patrimônio cultural, seu balé, sua música, a literatura, o cinema, seus museus e teatros? Os russos sempre expressaram a arte de uma forma magnífica, numa outra dimensão.

Podemos perceber a extensão desse acervo revendo A Sagração da Primavera, o balé de Stravinsky dançado pelo gênio de Nijinski. Nossos sentidos evocam um mundo romanesco clássico, onde se encontram Tolstói, Tchekhov, Pushkin, o tom intimista da poesia de Anna Akhmátova. Logo a seguir estaremos arrebatados com o concerto nº 3, de Rachmaninov, ou pelo cinema revolucionário de Eisenstein.

São obras primas que se perdem em meio à derrocada de Putin. Sabemos que existe algo que só o Romance pode dizer. Algo indizível, aquilo que está na fronteira do inverossímil e que só um romance pode desvendar. Quanto mais se observa uma realidade com atenção e obstinação, mais se compreende que ela não corresponde à idéia que todo o mundo faz a seu respeito. É esse olhar â contraluz que conduz os grandes romancistas para alem da fronteira do verossímil.

Estarão os romancistas em condições de antecipar essa visão do futuro? Apaixonado pela arte do romance, o escritor tcheco Milan Kundera escreveu um ensaio para falar dos dons divinatórios do romance. É deste olhar único que precisamos. Seria esse o caminho para atravessar a fronteira e penetrar a tragédia que se abate sobre o destino da grande Rússia, impactada pela guerra de Putin. Um romance nesta concepção não existe mais porque o mundo é outro, e seus autores estão todos mortos.

Em seu discurso na parada militar de celebração do dia da Vitória contra a Alemanha nazista, Vladimir Putin lamentou o colapso da União Soviética ocorrido há três décadas, que ele chamou de morte da “Rússia Histórica”. Disse que a crise econômica que se seguiu foi tão profunda que ele foi obrigado a trabalhar como motorista de táxi à noite. O camarada foi agente da KGB, o serviço secreto soviético, e tinha assento nos gabinetes do poder.

Ao considerar o colapso da URSS como “a maior catástrofe geopolítica do século 20”, ele expõe a dramaticidade da crise, que o levou a buscar uma saída na guerra. A agência de noticias estatal russa está produzindo um documentário chamado “Rússia, Nova história”, indicando um projeto de transformação da era Putin, ou pós-Putin.

Neste contexto, pressionado pela militarização da Ucrânia e sua incorporação ao complexo militar Otan/EUA, Putin decidiu antecipar a deflagração da guerra. Errou na previsão da resistência que encontraria dos ucranianos e nos seus desdobramentos. Segundo a justificativa oficial, tratava-se de “desencadear uma campanha de desnazificação”. A Ucrânia é descrita como um país inimigo, instrumento usado pelo ocidente para destruir a Rússia.

Ao celebrar o 77° aniversário da vitória sobre a Alemanha hitlerista, ele apelou aos sentimentos dos cidadãos e cidadãs. “Vocês estão lutando pela pátria mãe, pelo seu futuro, pelas mesmas causas que seus pais e avós lutaram. Não se esqueçam das lições da Grande Guerra Patriótica, Não há lugar no mundo para carrascos e nazistas.”

Como os czares que exerceram o poder de forma imperial e absoluta, e os bolcheviques que implantaram uma ditadura do proletariado, Putin busca governar concentrando em suas mãos todos os poderes. A primeira fase da guerra fracassou. Por quanto tempo mais se prolongará?

Enquanto os corpos são amontoados nas ruas e o conflito se prolonga, o império russo está à espera um grande romance que desvende sua alma. O romancista não é um historiador, muito menos um jornalista. Se a história o fascina é porque ela é como um projetor, que gira em torno da existência humana e lança uma luz sobre ela. Sobre suas tradições, suas possibilidades inesperadas e invisíveis, para além da fronteira do verossímil.

*Jornalista e escritor

 

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